A história foi-me contada há muito tempo. Suponho que na segunda metade dos anos sessenta, Alexandre O’Neill, regressando de um congresso de escritores algures na Europa, e de passagem por Paris, jantou com um grupo de portugueses amigos ou conhecidos. E relatou uma curta troca de palavras com um outro escritor também presente no congresso. Este perguntou-lhe pela nacionalidade e O’Neill disse-lhe que era português. O outro resolveu exprimir-se: “Portugal? Salazar? Que horror!”. Foi a vez de O’Neill lhe fazer a mesma pergunta. Era russo. E O’Neill: “Rússia? Estaline? Que horror!”.

Sempre gostei muito desta história. O’Neill não tinha, como é óbvio, qualquer simpatia pelo regime de Salazar, e, de resto, se há poesia que descreve as mil e uma formas de menorização e subserviência que o salazarismo instaurou é mesmo a sua. Do “medo perfilado” ao “modo funcionário de viver”, passando pela “pequena dor à portuguesa / tão mansa quase vegetal”, a “feira cabisbaixa” e o “Fazmòbséquio” dirigido ao funcionário que “destrabalha” no outro lado do guichê, está quase tudo lá, embora sem nenhuma cedência ao folclore da banda oposta, ou, como ele uma vez disse, da banda da barricada que se entrega ao “pequeno-almoço auroral” da boa consciência. O’Neill não tinha, portanto, qualquer gosto pelo salazarismo. Mas sabia em toda a sua extensão o abismo que o separava de um regime totalitário como o soviético. E a resposta dele recolhe a sua maravilhosa e surpreendente eficácia da rigorosa simetria formal dar a ver uma colossal assimetria substantiva, numa perfeita economia de palavras que vale por mil laboriosas explicações. O óbvio, por assim dizer, surge óbvio, sem dar lugar a possíveis argumentos encobridores, que é o que mais há por aí, e hoje não menos do que no tempo dele.

De facto, há algo de quase semelhante ao koan zen na resposta de O’Neill. Como se sabe, os mestres zen respondiam aos discípulos com frases enigmáticas. É verdade que (com intuitos pedagógicos) também lhes berravam ou davam pauladas, mas estes processos não se recomendam hoje e tornariam a vida universitária de um mestre zen um pesadelo no qual o melhor é nem pensar. Um koan, pelo contrário, é admissível. Ele visa, através da tal resposta enigmática, despertar aquilo que os sábios chamam a Grande Dúvida, primeiro passo para a descoberta de princípios da realidade para lá das opiniões privadas, uma iluminação súbita ou gradual (aqui as escolas divergem) que nos permite perceber o mundo fenomenal do ponto de vista desperto e não adormecido pelo barulho do mundo.

Porque o mundo é barulhento. Tão barulhento que – li no outro dia num artigo do Wall Street Journal – os próprios astrónomos têm dificuldade em capturar os sinais vindos do espaço porque o ruído dos sistemas de comunicação humanos (satélites de TV e companhias telefónicas) congestionam o espectro das bandas sonoras, algo que não acontecia no século passado. Como alguém disse, “é como tentar escutar uma pessoa que murmura algo enquanto todos os outros nos berram ao ouvido”. Uma descarga electrónica defeituosa de um urinol ou um aparelho de micro-ondas que produz um ruído agudo quando aberto podem, num observatório radioastronómico, afectar fortemente a observação de um pulsar. A ideia de que a descarga de um urinol pode abafar um venerando vestígio da implosão de uma supernova dá que pensar.

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Agora, se passarmos do mundo físico para o das opiniões, o barulho ainda é maior. Basta ver tudo o que circula por aí, com a vergonhosa ajuda de alguns responsáveis políticos e da infame incompetência de Ursula von der Leyen (desgraçadamente imune às avarias dos micro-ondas, que neste caso muito jeito nos dariam), sobre a vacina da AstraZeneca. O ruído e a desinformação não se medem. De facto, a União Europeia comporta-se um pouco como o tipo que deixa cair no soalho algumas espessas gotas de tinta preta e que, tentando apagar a mancha, consegue apenas fazer com que ela alastre em todas as direcções: acaba, a bem da uniformidade, decidindo pintar todo o soalho de preto. Está quase a conseguir, jogando forte no velho sentimento anti-inglês, revisto e aumentado pelo Brexit. O efeito é desastroso, como se pode ver no caso da atitude face à vacina da AstraZeneca, esquizofrenicamente requerida como urgente e condenada como, além de ineficaz, letal.  Já não há nenhum pequeno idiota no nosso cantinho da União Europeia (às vezes dá vontade de intercalar um “r” entre o “i” e o “a”) que não jure que a malfadada vacina jamais lhe entrará na pele e que preferiria morrer à fome e à sede, coberto de piolhos e de percevejos, ao som das obras completas do Padre Fanhais, do que ser envenenado a mando de uma sinistra farmacêutica inglesa. Multipliquem-se todas as opiniões nesta matéria por mil milhões e ter-se-á uma muito ténue imagem do barulho opinativo – da célebre racialização dos sujeitos ao aquecimento global – que nos rodeia. Só um mestre zen nos pode salvar.

Por esta e por outras, a técnica de Alexandre O’Neill parece-me, mais do que nunca, recomendável. Apenas mais um exemplo, acompanhado de uma sugestão. Ainda no Wall Street Journal, um outro artigo, da autoria de Gerard Baker, dava-nos conta de uma reunião entre os membros de um grupo de responsáveis pela política externa do Presidente Biden e alguns representantes da liderança chinesa. Yang Jiechi, o líder do departamento de negócios estrangeiros do Partido Comunista chinês, deu uma lição sobre direitos humanos ao Secretário de Estado americano Anthony Blinken, mencionando as extraordinárias deficiências dos Estados Unidos no capítulo, nomeadamente no respeitante ao tratamento das minorias e à intrínseca iniquidade da sociedade americana.

Claro que Blinken, sabedor que todas essas graves acusações faziam parte da plataforma eleitoral do Partido Democrático para as eleições presidenciais, e sabedor que Yang Jiechi igualmente o sabia, se encontrou numa posição difícil e apenas pôde balbuciar confusamente que pelo menos nos Estados Unidos esses problemas eram abertamente discutidos. Foi a única essencial diferença que encontrou entre o seu país e a China. Convenhamos que sabe ridiculamente a pouco. Mas, por um instante, imaginemos que Blinken não estava preso à corrente ideologia da vitimização que a plataforma eleitoral democrática encarnava do princípio ao fim. Que responderia ele a este “América? George Floyd? Que horror!”? Pura e simplesmente: “China? Tiananmen? Que horror!”. O outro, sendo chinês e conhecendo de certeza as escolas zen do seu país, perceberia perfeitamente o abismo sobre o qual, diferentemente da Cidade na Colina, repousa a Praça da Paz Celestial. Às vezes a iluminação, mesmo a imediata, é tão fácil…

Por mim, juraria tranquilamente limitar-me doravante, inclusive nesta coluna, a instilar, através do método acima descrito, a Grande Dúvida conducente à iluminação, súbita ou gradual. Seria, de resto, obviamente, uma tarefa à minha medida. Mas a verdade é que não tenho feitio para mestre, além de que poderia cair na tentação do berro ou da paulada (verbal), coisa que, como antes mencionei, convém nos dias que passam mais do que nunca evitar. Para mais, por estes tempos mergulhado na via mística de Chuang-Tzu, prefiro pensar que todas as coisas são uma só e não agir, deixando a natureza seguir o seu curso. É o que manda o Tao.