1. O efeito de choque tem-me vindo a subir, embora o tema não seja novidade, nem surpresa. Mas a repetição, a frequência e a dureza interpelam. Respigo títulos das últimas semanas: “Saques e violência marcam quatro anos de Maduro”; “Pelo menos cinco mortos em manifestações na Venezuela”; “Protestos da oposição na Venezuela deixam 14 detidos e 34 feridos”; “Chuva de ovos contra Maduro durante acto público na Venezuela”; “Igreja católica pede fim da repressão e dos grupos de civis armados”; “Lealdade militar em xeque na Venezuela”; “Chefe da OEA exige fim de ‘ações homicidas de paramilitares’ – Luis Almagro soma-se a denúncia contra os ‘coletivos’ financiados pelo chavismo”; “Sem salários, deputados têm de levar papel higiénico e água”. Há três semanas: “Elefante está a morrer à fome num zoo da Venezuela”. E há pouco mais de um mês: “Vinte e sete menores morreram de fome na Venezuela”; “Venezuela decreta emergência alimentar. 80% da população passa fome”.

Tremendo!

Há anos que a crise se enreda e se agrava, mês após mês. Há meses que acontecem confrontos violentos todas as semanas. Já foi tudo tão longe e tão fundo que surpreende como ainda pode haver mais crise depois da crise. A deterioração da situação não só choca os cidadãos do mundo, mas interpela a nossa política externa, sobretudo no período 2007/2017, os últimos 10 anos.

O povo venezuelano, que tem algumas tradições e pergaminhos democráticos, vem sofrendo horrores e as liberdades públicas têm sofrido atropelos constantes. O caos parece geral. Portugal é de alguma forma parte disso, na medida em que existe uma muito numerosa comunidade portuguesa na Venezuela, país nosso amigo e nós amigos dele.

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2. A comunidade portuguesa na Venezuela tem mais de 400.000 pessoas: gente trabalhadora e empreendedora, muito estimada e respeitada a nível popular e, tradicionalmente, pela Administração do país. Desenvolveu-se sobretudo nos transportes e comércio, nas áreas da panificação, supermercados, cafetaria e restauração, comércio alimentar em geral; mas foi-se alargando a outros domínios.

É uma comunidade antiga, com décadas de tradição, constituída de modo marcante por madeirenses. A par dos madeirenses e próximos de nós, há também os galegos e os canários. Sinal disso era a rota regular do famoso “Santa Maria”, paquete da Companhia Colonial de Navegação, que fazia regularmente a viagem Lisboa/Vigo/Funchal/Las Palmas antes de atracar em La Guaira (Caracas). Fiz ainda essa viagem em criança, só até ao Funchal, com o meu pai, que era madeirense. Mas conheci toda a rota e soube a sua razão: fazia a ligação à Venezuela e, pelo trajecto, embarcava (ou trazia de volta) portugueses continentais, galegos, madeirenses e canários.

Portugal tinha todas as condições para acertar na política relativa à Venezuela. Não só dispunha de numerosas e antigas fontes de conhecimento, mas possuía relações capilares muito estreitas com a sociedade e o país; por conseguinte, tínhamos a estrita obrigação de acertar, o dever de não errar. Diria mesmo que esse seria, em abstracto, um nosso trunfo na União Europeia: deveríamos estar no lado certo entre os europeus e saber explicar, constituir exemplo, de como tratar com um país latino-americano, nosso próximo e nosso amigo, que mergulhou em profunda mudança e prolongada crise desde os anos 1990.

3. No final da década de 1950, com a queda da ditadura Pérez Jiménez, a Venezuela encetou um desenvolvimento democrático que durou décadas. Era fundamentalmente um bipartidarismo de alternância: de um lado, a “Acción Democrática”, de Carlos Andrés Pérez (o CAP, amigo de Mário Soares), e o COPEI, de que a figura maior foi Rafael Caldera. Os primeiros, sociais-democratas, integravam a Internacional Socialista; os segundos, democratas-cristãos, integravam a UMDC – União Mundial da Democracia Cristã e pontificavam na ODCA, a Organização Democrata Cristã da América.

Apesar de alguns problemas, a democracia venezuelana estava socialmente enraizada, era vibrante e até um referencial no espaço latino-americano. Do lado democrata-cristão, a que eu pertencia, a Venezuela (antes de Chávez) e o Chile (antes de Pinochet) eram os dois grandes faróis no espaço latino-americano. Quando o CDS se fundou, Caracas era o pólo dos democratas-cristãos na América Latina, com grandes figuras políticas e intelectuais, de que conheci Rafael Caldera e Aristides Calvani. Os centros internacionais da Democracia Cristã na América tinham sede aí: a ODCA, a delegação da UMDC, a representação da Fundação Konrad Adenauer. Realmente, um farol. E, do lado socialista, com os “adecos” de CAP, acontecia um pouco o mesmo.

A praga da corrupção, muito oleada pelo petróleo e finança associada, ia tomando conta do país. O meu pai, que lá viveu um curto exílio, ironizava, já em 1977, que “a corrupção era o motor da economia venezuelana”. A sociedade venezuelana era também violenta, com assassinatos frequentes e muitos assaltos. Falo de Caracas, que foi o que conheci no final dos anos 1970, uma vez para visitar o meu pai, outra para a posse de um democrata cristão, o Presidente eleito Herrera Campins, a que fui com Adelino Amaro da Costa. A capital mostrava diferenças sociais agudas, espelhadas nos “ranchitos”, a favela contínua que cercava Caracas nas montanhas em seu redor. Contaram-me que os “ranchitos” haviam resultado de erros clamorosos de política social e económica nas mudanças de regime do pós-guerra. Constituíam uma pesada pendência política e social sobre o presente e o futuro do país.

Não surpreendeu a ruptura dos finais dos anos 1990 e a emergência de Hugo Chávez. Corrupção vasta, “partidocracia” desacreditada, violência latente, desigualdades acentuadas, pobreza, desagregação institucional, tudo provocou a mudança – uma espécie de demo-revolução por etapas, em choques e contra-choques. Em vários países da América Latina aconteceram, na mesma época, processos similares ou próximos, por causas idênticas, embora com modelos diferentes, consoante as especificidades de cada país e o tempo da ocorrência.

4. Portugal deveria ter guardado distância e escrupulosa prudência, em homenagem à numerosa comunidade portuguesa e sua protecção, aguardando uma acalmação duradoura do complicado tropel político. Cabia só aos partidos democráticos desenvolver pressão positiva sobre a situação, em solidariedade com os perseguidos e para defesa das liberdades fundamentais, das garantias individuais do Estado de direito e da democracia. Integrei, como deputado europeu, umas duas ou três missões de solidariedade e observação do Partido Popular Europeu, em momentos críticos da primeira década deste século. Aproximei-me sobretudo do “Primero Justicia”, um partido de centro emergente, constituído por gente brava – é preciso muita coragem para fazer política naquele clima e, ainda assim, conseguir ser moderado. Mas as minhas intervenções quer em Caracas, quer de regresso a Bruxelas/Estrasburgo eram diferentes e mais contidas e comedidas do que as dos meus colegas do PP espanhol. Mesmo como deputado, e não governo, creio que um português não poderia seguir o muito duro alinhamento espanhol. Não era só a linha vocal própria do PP, era também o modo como o “chavismo” incendiava frequentemente as relações com Espanha – a Venezuela fora refúgio e abrigo de alguns “etarras”, assim como, recentemente, se soube que financiou abundantemente a formação do “Podemos”. Para Portugal, era diferente. E tive sempre claro, além disso, que uma coisa era a liberdade que eu podia e devia exercer como deputado, outra coisa seria a posição oficial de qualquer governo de Portugal – não poderia ser actor, nem comentador do processo político venezuelano.

A memória que tenho é a de que, de um modo geral, até 2007, foi assim. Com um ou outro possível reparo pontual, a posição portuguesa era sóbria: não contestava porque não devia, não apoiava porque não podia. Presumo que mantivesse todos os canais diplomáticos atentos e activos, funcionais.

Era o que estava certo. Num prato da balança, não era só o folclore político-revolucionário do “chávismo”, o colorido fracasso do “socialismo do século XXI”, a instabilidade e a incerteza quase permanentes, ou a descarada ingerência noutros países latino-americanos, cavalgando a abundância de dólares do petróleo; eram também ora com o Irão, ora com Putin (em patética recriação da URSS), as provocações recorrentes aos Estados Unidos da América, nosso parceiro NATO. E, no outro prato da balança, era a numerosa e importante comunidade portuguesa que nos obrigava a manter canais operantes com as autoridades venezuelanas.

5. No final de 2007, a atitude portuguesa muda. Curiosamente, parece ter mudado na memorável Cimeira Iberoamericana em Santiago do Chile, em que o Rei de Espanha, D. Juan Carlos, virando-se para o Presidente da Venezuela, Hugo Chávez, lhe dispara o célebre «¿Por qué no te calas?» Alguma coisa se passou aí, que Sócrates veio diferente. É uma observação empírica, que carece de ser verificada.

A partir de 2008, desenvolvem-se entre Portugal e a Venezuela intensíssimas relações comerciais e de investimento ao mais alto nível. Sócrates, primeiro, e Paulo Portas, depois, conduzem pessoalmente esse intenso processo político e económico, que acaba por envolver, como era fácil de adivinhar, também uma estreita cumplicidade política. Foi o advento da diplomacia económica, na versão de política externa em regime de avença.

Foram várias as visitas oficiais de José Sócrates e Paulo Portas à Venezuela, na generalidade acompanhadas de comitivas empresariais. Outros ministros de Sócrates também, até 2011. Hugo Chávez passou a fazer escala em Lisboa, sempre que vinha pela Europa. Ficou célebre, parodiada pelos Gatos Fedorento, a cena do “Pino-Lino, Lino-Pino/Pino-Lino, Lino-Pino”, brincando com os nomes dos ministros Manuel Pinho e Mário Lino – Hugo Chávez tinha um enorme sentido de humor. A “Operação Marquês” tem-nos contado operações venezuelanas com o Grupo Lena, bem como outras movimentações de capitais envolvendo o BES, Helder Bataglia, por vezes com ligações ao Brasil do Lava-Jato e a Angola. Depois de 2011, com outro recorte, mas semelhante intensidade, a Venezuela permaneceu, com Paulo Portas, entre os parceiros preferenciais de Portugal. Foi grande notícia que nos iria comprar o tristemente famoso “Atlântida”, eternamente encalhado no estaleiro. Gorou-se essa operação, mas outras se terão feito. Chávez morreu em Março de 2013, sendo ainda Paulo Portas, nas Necessidades, a transmitir a preferência relacional ao novo Presidente Nicolás Maduro, anteriormente o seu par nas Relações Exteriores. Recentemente, aquando do chamado caso das “offshores”, soubemos que remessas de muitos milhões foram feitas pela Petróleos da Venezuela, a partir de Portugal, através do BES. E, pouco depois, soubemos também que a Petróleos da Venezuela provocara perdas significativas no Novo Banco, que o Estado teria de cobrir – ou seja, os contribuintes. A chamada diplomacia económica foi sempre prosseguindo.

É importante fazer o balanço disto. Quanto efectivamente foi investido? Quanto vendemos? Quanto nos foi pago? E quanto tivemos de comprar? O saldo líquido melhorou ou piorou? Foi efémero ou duradouro e sustentável? Houve geração de emprego? Os empreendimentos tiveram sucesso? Ou foram projectos alavancados em muito crédito, acabando alguma coisa nos bolsos de alguns e o resto em dívida para os contribuintes pagarem? Criou-se riqueza? Ou delapidou-se capital?

E, do ponto de vista político e diplomático, como ficámos? Têm-se repetido os apelos, os lamentos e as queixas dos nossos emigrantes. Que fez Portugal? É sabido que a comunidade portuguesa é sempre usada, em qualquer país, como desculpa para não tomarmos posição. Até ao ponto da neutralidade, isso pode estar absolutamente certo. Mas, quando se passa para o campo da cumplicidade parceira, não é assim. Os nossos emigrantes ganharam alguma coisa? Ou só têm tudo para se queixarem, como vamos ouvindo? A chamada diplomacia económica abrangeu-os? Ou ignorou-os, sobrevoando a realidade noutro patamar de negócio?

A verdade é que as notícias foram sempre más e foram sempre piorando. Mas a diplomacia económica pareceu indiferente à desgraça do país.

Este é um “case study” que é importante e urgente tratar: nas Universidades, no Instituto Diplomático, na imprensa e centros de estudos, no Palácio das Necessidades.

6. Pode ser que eu esteja enganado e, afinal, tudo tenha sido um sucesso. Uma linha certíssima de política. Gostava de saber como.

Mas creio que não: creio que foi um fracasso que nos provocou prejuízos económicos e financeiros, que nos envolveu em operações mal-afamadas, que fragilizou as condições de apoio e socorro aos nossos compatriotas, que feriu o nosso prestígio externo. Em suma, creio estarmos perante um fracasso multimodal da nossa política externa – devemos conhecê-lo com objectividade, quer para corrigirmos a rota, quer para rectificarmos o futuro. Precisamos de saber como e quanto.

Também é preciso sabermos o que o Governo actual anda, ou não, a fazer. A impressão que tenho é a de que o grau de cumplicidade baixou ou desapareceu mesmo, também porque a agilidade financeira da Venezuela caiu a pique com o agravamento da situação do país. Mas há que saber se a capacidade político-diplomática de Portugal foi recuperada, nomeadamente em apoio dos nossos compatriotas.

Infelizmente, continuaremos a ler notícias destas, como ontem: “Três mortos e dezenas de feridos na ‘mãe de todas as manifestações’”; “Mais de 400 detidos e duas estações de TV suspensas”; “Jovem baleado na cabeça em manifestação na Venezuela”.

A questão é saber por que é que, estando tudo isto à vista desde há muitos anos, nos fomos instalar, deslumbrados, no pedestal errado, liquidando qualquer espaço de influência e mediação política e destruindo qualquer capacidade de defesa e representação da nossa comunidade luso-venezuelana. Uma tristeza.