Cada vez mais, especialmente em Portugal, o discurso histórico e o discurso político remetem um para o outro e caiem cada vez mais baixo sob o efeito, não já das habituais ideologias ditas de «esquerda» ou de «direita», mas sim de um moralismo cada vez mais rasteiro. Inevitavelmente, este moralismo continua imbuído de réstias religiosas ou patrióticas que nunca ajudaram ninguém a avaliar de forma minimamente reflexiva aquilo que se passou há décadas ou há séculos e continua a passar-se, sob novas formas, hoje em dia.

São múltiplos os jornalistas profissionais e os colaboradores regulares da imprensa, alguns com intervenção partidária conhecida, que praticam cada vez mais esse estilo moralizante que descreve as pessoas das classes trabalhadoras ou os reformados provenientes dessas classes como «os pobres» por oposição aos «ricos», sem nunca se darem ao trabalho de dizer o que é «um rico» e muito menos analisar a estratificação social portuguesa e os seus recursos económicos, em termos nacionais e internacionais. Limitam-se a apelar a uma lágrima ao canto do olho a fim de vender aos leitores e espectadores uma ideologia partidária qualquer que pretende esconder a sua identidade e as suas intenções, apelando aos «bons» contra os «maus». Não fazendo, em suma, mais do que pregar moral.

Um autor que desliza constantemente do pensamento racional informado para essa espécie de chantagem moralista é o fundador do infausto Livre, Rui Tavares, conforme sucede num recente artigo com o título já de si paternalista: «Não tenham medo…»! Invocando a sua qualidade profissional, o que ele pretende, sob a capa da investigação histórica e do debate profissional, é legitimar em termos moralistas, semeados de proclamações patrióticas acerca das «nossas glórias passadas», uma pretensa liberdade de destruir estátuas e outras inscrições públicas que remetem para personagens, actos e valores hoje completamente ultrapassados nas democracias liberais, como é o caso da escravidão e do colonialismo. Uma coisa diferente é o racismo: um sentimento existente em todo o lado, embora assim não devesse ser, cujas manifestações devem portanto ser interditas e penalizadas.

O moralismo de tardia lágrima ao canto do olho reside em fingir ignorar que tais processos, que de resto não estão obrigatoriamente ligados entre si, como provaram os Estados Unidos ao libertar-se da colonização e terem uma guerra civil para por termo à escravatura, estão há muito concluídos para todos os efeitos legais e, segundo toda a probabilidade, não reaparecerão tão cedo. Com efeito, os antigos sistemas políticos coloniais e imperiais, para não falar do comércio de escravos, não têm rigorosamente nada que ver com a globalização, a qual fez dar um salto em frente a muitos países sub-desenvolvidos.

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Independentemente das vantagens materiais e simbólicas que todo um conjunto de países, incluindo Portugal, beneficiou ao longo de séculos, o facto é que a generalidade das regiões colonizadas tem hoje uma personalidade jurídica e política semelhante à nossa e pode reivindicar compensações em sede própria. Todas as antigas colónias fazem hoje parte da ONU em pé de igualdade formal com os países que as colonizaram. Por mais formal que seja esta igualdade, e é-o com certeza, o certo é que existe e pode ser invocada a nível mundial…

Por mais fortes que sejam os seus sentimentos políticos retrospectivos, um historiador profissional não pode com efeito desfazer a história a pedido. Foi mal? Foi bem? São perguntas sem sentido ou, pior, com um sentido escondido destinado a fundamentar futuros movimentos políticos moralistas e não a resolver seja que problema fôr. Faz algum sentido cada nova geração portuguesa mirar-se ao espelho e confessar que os nossos antepassados não deviam ter feito o que fizeram? Além de estulta, a pergunta só revela vontade de reescrever a história.

Se Portugal possui historicamente uma «vocação marítima», não é por lhe faltar a moral anti-colonialista e anti-esclavagista de Rui Tavares, como é óbvio, mas sim por ser uma estreita região ocidental da Península Ibérica virada para o oceano e por ter feito alianças internacionais que favoreceram a independência do Estado português relativamente à centralização espanhola, ao mesmo tempo que consagraram a sua soberania sobre os territórios que viesse a «descobrir» no sentido que a palavra tinha na época: sem isso, não havia Brasil nem o resto da actual América!

Rui Tavares está farto de saber isto. Por isso é que o seu moralismo é demagógico, conforme confirmam aliás os contra-sensos do seu exaltado discurso, como por exemplo essa diatribe trezentos anos atrasada contra o «esclavagista Colson que traficou mais de 80.000 seres humanos»… Ora, do ponto de vista ético, bastava um só escravo para o condenar… Aí é que reside o moralismo de um discurso dirigido, como o autor conclui, «às pessoas que têm a maturidade de reconhecer os seus erros». «Descobrir» o Brasil foi um erro? De quem?