A democracia queixou-se sempre do Estado Novo, como o Estado Novo se queixou da 1.ª República, como a 1.ª República se queixou da monarquia liberal, como a monarquia liberal se queixou da monarquia absolutista. É uma espécie de responsabilidade à portuguesa, uma escadinha de passa-culpas que tudo lava e tudo cura.

Mas nestes quase 50 anos de democracia talvez seja de arriscar fazer balanços. Além dos avanços de natureza social que foram alcançados, boa parte deles já em processo de alargamento ainda antes do 25 de Abril, e que na verdade só acabámos por conseguir pagar graças a dinheiro de contribuintes europeus na sequência da nossa adesão às comunidades, que por sua vez nos obrigou a alterar alguma coisa, e nos viciou na mão estendida, como um país que pede permanentemente esmola bem remunerada, além desses avanços, dizia eu, e dos efeitos directos das primeiras mudanças estruturais sem continuidade, o país tornou-se, não ignorando uma mão cheia de gente que ainda vai suando as estopinhas para produzir alguma riqueza, uma máquina de produção de emigração, uma espécie de ilha a meio caminho entre a civilização e o terceiro mundo.

Não produz em quantidade suficiente, não gera riqueza, não vê os salários crescer, não vê a ascensão social como possível, e quem tem ainda alguma ambição pessoal e profissional emigra ou educa os filhos para emigrar. Passámos por três intervenções do FMI e parece que estamos disponíveis para a quarta, e para nos queixarmos dela outra vez. Não criámos um capitalismo a sério, concorrencial, livre, responsável e responsabilizado, mas aprendemos a viver num capitalismo de castas e de favor, de resto o espelho perfeito da sociedade que somos, em que meia dúzia de ratos trepa na cadeia da endogamia e do nepotismo até alcançar o topo e, uma vez lá chegados, se esforçam mais um bocadinho por fechar a porta de acesso a outros que lá possam querer entrar através do seu esforço e do seu trabalho. Pelo caminho, serviços públicos depauperados, professores, médicos, enfermeiros, tudo desesperado por condições de trabalho e salários dignos, que o Estado também já não pode nem consegue oferecer, transformado num aparelho burocrático mastodôntico e confuso, desprovido de qualquer dignidade, embora carregado de pelintras e pilantras da pior espécie, despachados para lugares de chefia e administração, numa teia complexa de pequenos poderes e dependências várias e que se especializou em subsidiar a miséria e em atrapalhar quem quer fazer alguma coisa da vida.

Tal como a ditadura em 1974, já longe do que tinha sido nos anos 30 e 40, também a democracia está, em 2022, longe do que foi sonhado por alguns, de formas distintas, no seu início: os dois regimes, a ditadura e a democracia, chegam, ao fim do mesmo número de anos, a um terreno pantanoso que é, no fundo, a «situação», uma clique de instalados, governados entre si, favorecidos entre si, com a agravante de terem alimentado mecanismos de dependência e assistencialismo, e não um verdadeiro e livre Estado Social, que apoia quem precisa, mas que os liberta com a perspectiva de que não é suposto alguém precisar de ajuda a vida inteira – e se precisar é sinal de que as políticas estão a falhar de alguma forma e não a funcionar lindamente.

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É o subsidiozinho para aqui, a tarifa social para ali, um apoiozinho para acolá. E «coisas gratuitas» que «o Estado dá». Estamos em 2022 e ainda há quem tome por boa esta conversa das «coisas gratuitas». Como se elas não fossem pagas por alguém. Como se necessitar de «coisas gratuitas» que o «Estado dá» fosse melhor do que ter condições de vida suficientemente boas para as comprar com o fruto do seu trabalho.

Agosto é mês dos emigrantes. A pátria empobrecida, as suas autoproclamadas elites, patéticas, quase sempre na vanguarda do atraso e no altar da sua presunção, ficam a fazer pouco deles: dos seus carros, das suas casas, da sua linguagem, do seu esforço, do seu trabalho, do seu dinheiro, das suas excentricidades. No mesmo mês em que os emigrantes regressam ao seu Portugal, o portugalinho da Arcada e São Bento respondeu-lhes com mais um caso de telejornal, desta vez com o antigo director da TVI, agora feito consultor de políticas públicas do seu antigo empregado feito ministro. O bom do emigrante, estando perfeito do seu juízo, gozará o sol e a sardinha assada e voltará ao seu lugar na civilização, enquanto nós vamos celebrando com a indiferença rotineira uma espécie de versão adaptada d’A Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, que podia ser mais ou menos assim:

João nomeava Teresa que nomeava Raimundo
que contratava por ajuste directo com Maria que nomeava Joaquim que subornava Lili
que não pagava a ninguém.
João foi para gestor público, Teresa para Ministra,
Raimundo ficou com uma assessoria, Maria ficou para Secretária de Estado,
Joaquim abriu uma vaga para o tio e Lili empregou J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.