António Variações cantava-nos que “quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga”. E quando a sociedade não tem juízo, quem é que paga? Pagam as crianças, pagam os bombeiros, pagam os imigrantes, pagam os loucos e os sanos. Pagamos todos. Disparate por disparate, descemos ao ridículo, desde políticos a comentadores profissionais, desde influencers a jornalistas. Aqui fica o retrato de uma terça-feira em Portugal.

É de manhã e o país arde intensamente há mais de 48 horas. Há vítimas mortais, há jornalistas demasiado perto do fogo, há politiquice oportunista, há atiçar de culpas para a esquerda e para a direita. Os outros nunca fazem tanto como nós e há que dizê-lo sempre, mesmo quando o momento é inoportuno. A tristeza do cenário é inegável e as vidas perdidas são sempre uma tragédia, mas tenta-se passar à frente. A culpa encaixa melhor nas alterações climáticas (que calor é este em setembro?!) ou nos incendiários perturbados pelo país afora. A culpa não encaixa tão bem nas políticas públicas, não encaixa tão bem no excesso de eucaliptos, não fica bem que a culpa possa ser mesmo de grupos de pessoas com poder para tomarem decisões políticas, económicas e sociais. Fica sempre melhor que a culpa seja ou do aquecimento global (é um problema que os políticos portugueses podem varrer para debaixo do tapete, basta culpar a China ou outra qualquer potência mundial) ou do “maluquinho” que gosta de ver chamas.

À tarde, o mediatismo dos incêndios teve de dividir a atenção com o caso do esfaqueamento numa escola da Azambuja. É cada vez mais frequente a pergunta “já se sabe a nacionalidade/raça/cor do agressor?”. Devo ter estado desatenta às aulas de psicologia, porque me escaparam essas cadeiras tão importantes como “A raça da saúde mental” ou “Os caucasianos são sempre os menos violentos”. Não é por ser psicóloga que concordo que a falta de psicólogos tanto nas escolas como no SNS seja absolutamente vergonhosa. Há quem sugira que os psicólogos são uma espécie de souvenir do século XXI: “não servem para nada e no nosso tempo não havia.” A questão é que os tempos mudam e o nosso tempo mudou como nunca vimos. Nunca na nossa existência estivemos mais tempo a olhar para os olhos de máquinas do que para os olhos uns dos outros. Nunca soubemos distinguir tão mal a fronteira entre a realidade e a ilusão. As redes sociais e a inteligência artificial fabricam a uma velocidade atómica eventos e pessoas que não são reais. O meu irmão menor de idade tal como muitos outros como ele estão a crescer a acreditar que é normal um youtuber ganhar milhares de euros a destruir objectos ou que é normal acabar um relacionamento por telemóvel em troca de uma playstation. A quem cabe impedi-los de se desenvolverem cada vez mais nesta realidade?

Os psicólogos são cada vez mais importantes por uma série de razões, mas a que considero mais premente é bastante simples: os psicólogos podem vir a ser o único momento do dia em que uma criança, um adolescente, um jovem, um adulto ou um idoso despendem o seu tempo a ser ouvidos e a ouvir. Os psicólogos não seriam tão necessários se falássemos mais uns com os outros, se olhássemos mais para os olhos dos outros, se ouvíssemos mais as palavras dos outros. Mas a verdade é que falamos, olhamos e ouvimos cada vez menos. Os psicólogos nem sempre existiram, é verdade, mas as redes sociais também nem sempre existiram. Nem sempre foi tão fácil encontrar desumanidade online, premiada por likes infinitos. Há quem ganhe dinheiro com frases como esta “mete like se também odeias esta pessoa!”.

É quase de noite e o ministro Adjunto e da Coesão Territorial Manuel Castro Almeida disse que a mulher lhe fez a mala para três dias. O país ainda arde, mas pouco interessa. Quem se autoproclama feminista tem aqui motivo de revolta para o resto da semana, é que nem se compara à revolta de ter um país em chamas. É certo que não é frase que fique particularmente bem a ninguém, mas obsessão em alimentar o ódio entre homens e mulheres está de uma forma que eu nunca vi. Clara Não, colunista do Público, entre outras figuras, veio expressar o seu desagrado, e no seu instagram escreve “Manuel Castro Almeida não é um homem funcional”. Clara Não redige ainda uma “lista de coisas necessárias para ser um homem funcional.” O primeiro requisito é saber cozinhar. Imagino então que uma mulher que não saiba cozinhar também é disfuncional. Mas isso não seria machista? Estaremos a começar a ser machistas com os próprios homens?

Quer queiramos quer não, o mundo transformou-se num lugar onde as mulheres não podem fazer coisas pelos homens, mas os homens podem fazer coisas pelas mulheres. No século XXI, há muitas mulheres que não cozinham nem querem e não é por isso que são disfuncionais, tal como um homem que não o faz não tem de ser disfuncional. As feministas responder-me-iam que o problema da sociedade é que é sempre o homem que continua a não saber fazer tarefas domésticas básicas. Eu refuto este facto. Talvez no tempo das nossas avós e das nossas mães, mas isso acabou. Nos dias de hoje há muitas mulheres e jovens que não sabem nem querem fazer tarefas domésticas básicas como cozinhar. Se há algum problema? Nenhum, mas não continuem a falar como se só os homens fossem disfuncionais. Se um homem é disfuncional por não cozinhar, uma mulher também. Agora leiam outra vez. E vejam como tudo isto soa tão mal. Criar e defender uma causa que pode ser nobre como o feminismo é boa ideia até ao momento em que as forças motrizes da causa passam a ser o ódio e a ofensa.

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