“Demita-se da rotina e dos horários certinhos. Demita-se de tentar ser empreendedor com um patrão que tudo pode, quer e manda. Demita-se da vidinha de uma organização que não sabe acompanhar o ritmo alucinante da mudança. Demita-se de esperar. Demita-se de explicar ideias novas a quem só tem soluções antigas. Demita-se dos compromissos, dos jogos de interesse das rivalidades internas. Demita-se dos adiamentos, dos sonhos por concretizar. Demita-se do talento não reconhecido, do esforço sem retorno.”
Era assim que arrancava o editorial da primeira edição da Ideias & Negócios, uma revista que nasceu em plena euforia tecnológica e da bolha das dotcom, em novembro de 1997. Mais do que um manifesto, este texto assinado pelo então fundador Diogo Vasconcelos (precocemente desaparecido em 2011) era uma provocação – e esse tom desafiador era assumido pelo próprio lema da revista: “Despeça-se já!”. Não faltou quem o fizesse e o certo é que, inspirados por isso ou não, muitos lançaram grandes ideias, pequenos negócios, projetos disruptivos, startups inovadoras.
Alguma coisa estava a mudar na forma de fazer e encarar os negócios que parecia ir ao encontro dos conselhos que rematavam esse mesmo editorial: “Chegou a hora de assumir riscos. De testar a sua ideia. De angariar apoios, de construir parcerias, de criar uma rede de alianças e cumplicidades. Avise os amigos. Reúna esforços. Prepare-se para o embate inicial. É altura de por à prova as suas capacidades. O capital é importante, mas você é o principal activo. Enfrente-se a si próprio. Assuma a sua marca, marque o seu trajecto. Construa a sua liberdade. Crie a sua própria empresa”.
Nessa altura assisti de perto ao melhor e ao pior do empreendedorismo nacional. Ideias geniais que se converteram em negócios prósperos, empreendedores que saltaram do anonimato para a ribalta, investidores que multiplicaram capital, marcas que vingaram, projectos que ainda hoje resistem. Mas os tropeções sempre foram quase tantos ou até mais do que os sucessos no universo de startups. Vi também boas ideias serem esvaziadas por más decisões de gestão, capital que se perdeu à custa de aventuras mal calculadas, empreendedores que desistiram, investidores que se arruinaram, marcas que se apagaram. Uma tragédia? Um drama empresarial? Nada disso. Apenas o ciclo natural das jovens empresas de base tecnológica a cumprir-se. Um ciclo em que, já nessa altura, a taxa de sobrevivência desses projetos era baixa, em que mais de metade não durava mais de três anos e apenas uma percentagem mínima passava a fasquia dos sete anos. O sucesso, sim, era a exceção num ecossistema ainda a viver os verdes anos, ainda a aprender a lidar com o risco e os novos modelos de negócios.
A recente revelação do “negócio fantasma” em que se tornou a popular Chic by Choice, e a polémica gerada pelas notícias, trouxe-me todas estas memórias de volta, incluindo aquele manifesto. Primeiro, porque se mantém tão atual há dez anos como se tivesse sido escrito hoje, lembrando o que deve ser a atitude e ambição de quem quer começar um negócio. Depois, porque recorda tudo aquilo que o chamado ecossistema empreendedor ainda não conseguiu aprender — e tudo o que ainda lhe falta crescer. A história revelada pelo Observador, resumida em poucas palavras, dá conta de um negócio que paralisou e deixou de interagir com os clientes, de uma empresa que acumula prejuízos e cujas fundadoras até já trocaram por outras empresas, como a Farfetch e a consultora A2D, onde desempenham novas funções.
E a Chic by Choice, perguntamos, o que lhe aconteceu? Das empresárias e também dos investidores, silêncio. Mesmo depois de todo o mediatismo, que nunca rejeitaram, da muito recente distinção da Forbes. Vergonha de assumir erros? Embaraço de reconhecer más escolhas? Seja qual a for a motivação, nenhuma é compreensível e traduz a falta de maturidade que ainda existe neste meio. Ao contrário de outros países — em que o ambiente empreendedor encara o falhanço como lição e não como castigo —, por cá ainda há quem aponte o erro como um estigma. Sem margem para segundas oportunidades. Erro é fator para eliminar, não para aprender.
O pior, e isso agora ficou bem à vista, é que esse (inexplicável) silêncio gera desconfiança no mercado: sobre quem cria negócios e precisa de investidores e sobre quem financia e procura parcerias. Quando Filipa Neto e Lara Vidreiro se lançaram no projeto de criar a Chic by Choice deviam saber, desde o primeiro minuto, que estavam a assumir riscos, muitos. Não apenas financeiros, mas também pessoais, de reputação. Que estavam a criar expetativas no mercado. E que tudo isso lhes trouxe liberdade, mas também responsabilidade. O mesmo se aplica aos seus acionistas e investidores, como é o caso da Portugal Ventures. Que podiam ter sido mais parceiros. Que deviam ter acompanhado mais, escrutinado melhor. Assumir agora que o negócio é insustentável parece apenas uma saída fácil.
Nesta fase, seria importante recordar aquela máxima de Beckett: “Tentar outra vez, falhar outra vez, falhar melhor”. Podia, devia, ser o mote de qualquer empreendedor. É também uma forma de crescer. Porque ninguém aprende a andar sem antes cair e esfolar os joelhos, certo? E essa é uma lição que serve a todos: a quem tem ideias, a quem cria negócios, a quem os financia, a quem os promove. Seja a Chic by Choice, seja qualquer outra empresa. Quanto a quem troça e penaliza quem tropeça pelo caminho, apenas uma sugestão: porque não se despedem e vão experimentar o que é falhar muitas vezes antes de acertar?
Por falar em falhas e silêncios.
Já passaram cerca de quatro meses desde a última vaga de incêndios que devastou uma parte do país, quase oito meses depois da devastação em Pedrógão Grande. Houve lágrimas pelos mortos, promessas pelos vivos, garantiu-se que a lição foi aprendida, que os erros não se repetirão, que se moveriam mundos e fundos para que tudo fosse diferente dali por diante. Só que não. Passaram meses e ainda não se moveram os mundos e fundos necessários para evitar tragédias como as do verão passado. Há casas por reconstruir, apoios por chegar, helicópteros parados e inoperacionais por falta de peças, investimentos por fazer em sistemas de comunicação e segurança. No meio de tudo isto, anda o Fisco, a mando dos ministérios da Administração Interna e da Agricultura, a enviar cartas aos contribuintes, sem olhar a meios, agregados ou geografias, a lembrar que têm de limpar mato e cortar árvores em redor de casas, armazéns e fins. Mais: atrevam-se a deixar essa tarefa para depois de 15 de março e a multa será a dobrar. A sério, senhores governantes? Se esta é a melhor estratégia em curso para antecipar e prevenir a próxima época de fogos — e convém recordar que são menos os meses que faltam do que aqueles que já passaram desde o último verão — teme-se o pior.