Foi no longínquo ano de 2008 que um país europeu, em pleno século XXI, entrou em insolvência. Estávamos, então, no olho da crise do subprime de que muitos se querem esquecer, quando a Islândia, pequeno país algures no meio do Atlântico Norte, cheio de vulcões e gelo, conseguiu essa proeza.
Recorde-se que nesse período, a dívida da Islândia chegou a representar 900% do PIB (com a nacionalização de todos os bancos) e a moeda nacional (coroa islandesa) sofreu uma desvalorização de 80% em relação ao euro. O país ainda mergulhou numa profunda recessão, com o PIB a encolher 11% entre 2008 e 2010.
Desde então muito se escreveu sobre as causas desta insólita situação, bem como sobre as consequências que daí decorreram, quer para os nativos que se viram de repente mergulhados no inferno, com a descida brutal do nível de vida e o aumento exponencial do medo e da insegurança, quer para o resto do mundo que veio a conhecer uma crise de cujas réplicas ainda não se livrou.
Mas eis que, depois de várias soluções governativas, mais ou menos ineficazes e impopulares, (ainda que a economia se esteja a recompor), a última das quais culminando com a queda do primeiro-ministro por ter offshores nas Caraíbas, o tal pequeno e hoje muito cool pequeno país de vikings, volta a ser notícia. Desta vez porque vai ter um governo constituído pelo partido Pirata.
Ou seja, depois de terem tentado quase tudo, os islandeses escolhem um partido excêntrico, fora do sistema, alternativo. Trata-se, no caso islandês, de um movimento de protesto, liderado por Birgitta Jonsdontt, cuja ideologia é dizerem-se contra qualquer ideologia.
Estes partidos “Pirata”, também em voga noutros países do Centro e Norte da Europa, começaram por se apresentar contra as leis de propriedade intelectual e industrial, incluindo copyright e patentes, contra a violação do direito de privacidade e a favor da promoção de práticas de software livre. Depois foram evoluindo para a defesa da versão pós-moderna dos “direitos civis”, da democracia direta, da partilha livre do conhecimento e a favor da transparência.
Sinal dos tempos. Também em Itália o partido mais popular, quase à beira de conquistar o poder, é o “Cinco Estrelas” cujo líder é um “palhaço” (ou, para ser politicamente correto, um humorista), cuja ideologia assenta na expressão italiana “vaffanculo”, o que parece dizer quase tudo sobre si.
Aliás, a propósito desta onda de vazio ideológico, não deixa de ser expressiva a frase do ex. primeiro-ministro Mateo Renzi, aquando do seu discurso de demissão, após a grande derrota no referendo por si irresponsavelmente convocado: “ fazer política andando contra tudo, é fácil. Fazer política a favor de algo mais, é mais bonito. É mais difícil, mas é mais bonito”.
Beppe Grillo, qual “bobo” da política italiana, e grande vencedor do mesmo referendo, responderia ao desalento estético de Renzi, concluindo que, “hoje em dia, dizer ‘não’ é das maneiras mais bonitas e gloriosas de fazer política. E quem não entender, vaffanculo!”.
Está tudo dito! Com “piratas” e “palhaços”, o circo chegou à política. Esta, que já era para muitos um mero espetáculo ou paródia para entretenimento das massas, alcança agora o cume da trágico-comédia, ao ser protagonizada por representantes das elites que dizem, como sempre, representar finalmente o povo contra essas mesmas elites.
Como afirma António Araújo na sua obra ”Da Direita à Esquerda” (2016), a propósito do sistema político português, a maioria das coisas que fazemos na vida não é enquadrável na dicotomia esquerda vs. direita”, mas “a grande clivagem que subsiste (…)” continua a ser “a que divide elites e não elites, já que a maioria das controvérsias que emerge na esfera pública se situa, hoje como ontem, num âmbito elitista, urbano e sofisticado”.
Ainda assim, e mantendo algum relevo na clássica dicotomia, é verdade que a esquerda radical está a tornar-se, pouco a pouco, social-democrata, fazendo progressivamente desaparecer o centro-esquerda. E a direita radical, essa, faz a caminhada de sempre. Procura, como é seu timbre, assegurar o poder, acolhendo, paradoxalmente, os destroços desse mesmo centro esquerda desiludido.
Algo vai mal no reino da nossa democracia. Os aristocratas e os clérigos já se haviam retirado, os burgueses saem acossados, os burocratas parecem sem rumo. Até os militares, essa casta de reserva para os momentos difíceis, parece estar domesticada, adormecida. Para compor a fábula só nos falta mesmo um verdadeiro lobo mau. Com o tempo, infelizmente, acaba por aparecer sempre algum. É da natureza das coisas…
Resta, mais uma vez, o povo. Este parece não querer uma coisa nem outra, busca apenas uma alternativa que lhe restaure a tranquilidade perdida. Mas, para tal, como sempre, precisa de uma vanguarda e essa reside agora nas redes sociais, nos movimentos de “piratas “, de “palhaços” ou “estrelas”.
A questão que todos colocam é: como foi possível chegar aqui? A questão essencial, todavia, é outra: como foi possível voltar aqui? Quanto à resposta, podemos retirá-la da história, pela decadência das instituições e dos seus representantes, pela evolução da técnica, pelo ciclo natural do nascimento e da morte de tudo o que é humano e, por conseguinte, transitório.
Ao aparente ceticismo decadentista, assente na natural recorrência das crises, acrescentamos hoje como ameaça à clássica democracia demoliberal, a instabilidade económico-financeira, o desemprego e o retrocesso da igualdade, com a consequente perda de confiança e o inevitável ressentimento por parte da classe média.
Nietzsche diria estarmos perante mais uma “transmutação de todos os valores”. Direi apenas que a humanidade, depois das suas quedas, sempre conseguiu recuperar, porventura com outros protagonistas, com outras soluções, mas nunca para além do bem e do mal.
A política é ação, mas sobretudo capacidade de julgar com base em valores, sem prescindir da diferença entre o bem e o mal. Tantas vezes, por não se ter em conta essa sensatez, essa capacidade serena de julgar é que os piratas chegam ao poder…
Professor universitário