N’A dinâmica do capitalismo (1985) Fernand Braudel argumenta que, na longa duração multissecular que baliza entre o tempo das economias-mundo(iniciado em finais da idade média, no século XIV, quando algumas economias se desenvolveram em torno das grandes cidades da época, mas funcionando em espaços geográficos delimitados e com forte autonomia umas das outras) e a instituição da economia mundial(na sequência da industrialização europeia, iniciada no século XVIII, quando certos espaços nacionais passaram impor o seu domínio económico ao mundo propriamente dito), terão sido as características peculiares do mundo ocidental que permitiram que este se destacasse da China e do Islão (designação do autor para mundo árabe e império turco).
O historiador francês sustenta que, de forma consistente ao longo de séculos, no ocidente europeu as elites económicas e sociais beneficiaram de uma certa neutralidade, complacência ou fraqueza por parte do poder dos estados territoriais entretanto centralizados. Ao tolerar que as grandes famílias de negociantes, industriais e banqueiros criassem as suas próprias genealogias, a cúpula dos estados fez com que o destino das elites económicas e sociais europeias não se confundisse com o destino das cortes, sendo estas inclusivamente influenciadas por aquelas.
Sem a autonomia do económico e do social em relação ao político/estado, tradição reinventada nos Estados Unidos da América, Canadá, Austrália ou Nova Zelândia não teria sido possível gerar, manter e consolidar, na contemporaneidade industrializada, a grande vantagem comparativa dos sistemas de matriz ocidental.
Em sentido contrário, a China e o Islão nunca se libertaram da forte sobreposição entre o destino do poder político (precisamente porque souberam centralizá-lo no estado) e o destino das elites sociais e económicas. Considerando que o controlo do primeiro tende a mudar substantivamente por sucessão ou revolta, ou apenas porque o poder desconfia dos que acumulam riqueza, a funcionalidade global dessas sociedades e economias acabou fragilizada na longa duração multissecular dado que as elites económicas e sociais viam-se forçadas a regressar à casa de partida por serem ciclicamente devoradas pela instabilidade da sociedade política. Obrigadas a reinventarem-se sem o suporte de uma (longa) tradição, tornaram-se frágeis.
Tais tendências terão sido responsáveis pela transformação das que podem ter sido as economias-mundomais pujantes da era pré-industrial em sistemas que, uma vez entrada a contemporaneidade, não se revelaram capazes de ultrapassar estádios intermédios. Além da China e do Islão, a Índia é tipificada como um modelo mitigado por causa da autonomia do sistema de castas em relação à instabilidade da cúpula do estado, enquanto o Japão se manteve próximo do modelo ocidental.
Apesar das transformações nas décadas recentes que o historiador francês não poderia conhecer em 1985 quando escreveu, não foram ainda desfeitas as incógnitas sobre a resistência dos sistemas fora do contexto ocidental a impactos das inevitáveis crises cíclicas quando elas os atingirem com particular intensidade. A Rússia, o mundo árabe, a América Central e do Sul ou a África Subsariana continuam a não deixar dúvidas das suas fragilidades, restando verificar se a China, os Dragões e os Tigres Asiáticos estão a reverter as tendências do passado por beneficiarem do deslocamento progressivo do centro económico do sistema internacional do Atlântico para a região da Ásia-Pacífico.
E Portugal?
Portugal possui uma das identidades territoriais nacionais mais antigas e estáveis, características a que não é indiferente o poder agregador do cristianismo desde a origem. Mesmo parcialmente transfigurado em laico a partir do século XIX, o catolicismo continuou a resistir enquanto referente essencial na continuidade da identidade portuguesa quando os outros grandes referentes de agregação social falharam ou entraram em rutura entre si, seja em resultado da ausência ou desaparecimento da figura do monarca, seja pela saliência de antagonismos em situações limite (crises financeiras e económicas graves, participação em conflitos armados).
Se o país beneficia ainda do resguardo do contexto ocidental, o funcionamento da cúpula do estado aproxima-o das tendências de longa duração tipificadas para a China e para o Islão.
Na sua ambiguidade, Portugal mantém-se filiado desde a origem aos ciclos históricos do Ocidente europeu, mas ao mesmo tempo foi resvalando para a periferia desse mesmo contexto civilizacional. Ao contrário do interpretação comum, a revolução do 25 de Abril de 1974 mais não foi do que o mais recente impulso ratificador dessa periferização, uma vez que a última resulta de um poder político que ciclicamente invade de forma abrupta o campo económico e o campo social, desregulando-os por muitas gerações. É por isso que o atraso português é consequência de características identitárias endógenas sedimentadas na longa duração.
Depois de, em 1128, um matricida na forma tentada ter feito nascer a nacionalidade, a transição da primeira para a segunda dinastia (1383-1385) quase tudo refez na cúpula do estado com impactos nas elites sociais e nas dinâmicas económicas (foi o tempo do início da expansão e dos descobrimentos), tal como mais tarde o desastre de Alcácer Quibir (1578) após abrir as portas à reinvenção filipina (1580), esta a prazo acabou esfrangalhada num regresso à casa de partida, a restauração da independência (1640).
Se alguns desses impulsos modernizaram o país pelos padrões da época, a partir do século XVIII as profundas transformações impulsionadas pelo início da industrialização inglesa e pela afirmação de regimes e sociedades liberais nos EUA e na Europa tornaram os pressupostos do progresso sustentável bem mais exigentes, no sentido considerado por Fernand Braudel. A questão é que a instabilidade na cúpula do estado e respetivos impactos na sociedade e na economia tornaram-se ainda mais recorrentes no então já velhoPortugal.
O fado da identidade coletiva amadurecer ligeiramente e a economia desenvolver-se um pouco apenas para, passos adiante, se jogar o menino com a água do banho na ânsia de modernizar pela rotura com o passado imediato repetiu-se no processo de afirmação do Marquês de Pombal (1750/1755/1758) e, logo de seguida, na transição da governação pombalina para a apropriadamente cognominada Viradeira, D. Maria I (1777). O ciclo continuado de ruturas prosseguiu com as revoluções correspondentes à transição do absolutismo para o período liberal (1820), incluindo uma rara guerra civil (1828-1834); da monarquia para a I República (1910); desta para a II República/Estado Novo (1926); e, finalmente, para a atual III República (1974). Beneficiando da forte coesão social e do resguardo do contexto ocidental que tornam esse tipo de processos pouco sanguinários, o percurso revela o egoísmo infantil de cada nova geração que sente necessidade de se entreter com a sua própria revolução, tradição que persiste endémica e constitui razão maior do atraso português.
Vai sendo tempo dessa velhasociedade ultrapassar esse estádio primário interiorizando as diferenças entre, por um lado, as grandes ruturas (revolucionárias) cujos resultados disfuncionais se espraiam num presente ainda no rescaldo da mais recente revolução (1974) e, por outro lado, a necessidade de reformas permanentes, negociadas, equilibradas, sem sobressaltos enquanto suporte de um progresso que, para o ser, necessita de séculos de estabilidade política.
Para que tal se verifique, importa que os indivíduos comuns valorizem muito mais, em particular nas suas elites, a capacidade de saberem que existem uma sociedade e uma economia que funcionam em campos que necessitam de graus de autonomia significativos em relação ao campo político e que devem ser preservados pelo estado mesmo nas circunstâncias mais exigentes. Quanto mais a contemporaneidade avançou, mais complexas se tornaram as sociedades e as suas instituições e mais sofisticados os respetivos circuitos económicos, razões para as intromissões abruptas, sistemáticas ou tão-só descuidas do estado comportarem sempre o potencial de espoletar disfuncionalidades que, vezes sem conta, desembocam em fenómenos de regressão dificilmente recuperáveis.
Tal jamais significa colocar em causa o monopólio do poder coercivo legítimo que define o estado. Bem pelo contrário, é condição do seu reforço. Mas essa prerrogativa tem valor apenas quando o seu uso efetivo é excecional porque a ação do estado é compensada pelo exercício habitual de um poder regulador moderado. Está em causa a busca permanente de pontos de equilíbrio em que quanto mais a sociedade puder ser autónoma e quanto mais pesar na sua inevitável relação com o poder tutelar do estado, tanto mais livre e próspero será o país no seu conjunto. Se isso poderá não ser viável em diversas regiões do mundo, é seguramente viável na Europa ocidental.
E não existe cultura cívica em políticos pouco dotados da capacidade de estabelecerem compromissos equilibrados entre a tradição e a modernidade, entre o que vinha do passado imediato e o que se ambiciona para o futuro, entre o que vem do interior das identidades nacionais e impulsos vindos do exterior, gestão complexa de pontos de compromisso que as patologias revolucionárias nunca conseguem atingir.
O facto é que o correr dos séculos colocou os portugueses comuns nas mãos de elites toxicodependentes de ruturas políticas, o que tornou a identidade coletiva incapaz de encerrar os ideais revolucionários no passado histórico, de preferência num passado longínquo considerando que se trata de um povo com nove séculos de existência consciente. Por razões de sanidade mental coletiva, basta de 5’s de Outubro, 28’s de Maio e 25’s de Abril. Renovar e celebrar tantas revoluções é o mesmo que dar força social à perpetuação no tempo das causas do atraso português.