Despeço-me de Quino com uma sensação de incumprimento que desejaria ver reparada. Em cinquenta e seis anos, desde o aparecimento de Mafalda ao momento da morte do seu criador, o mundo onde Mafalda habita e sobre o qual se interroga, reivindicando «o seu direito a continuar a ser uma criança que não quer assumir a responsabilidade de um universo adulterado pelos pais», como tão bem a definiu Umberto Eco, pouco mudou. Mudei eu. De criança curiosa à descoberta de um mundo imperfeito, a adulta responsável por aquilo que deixo às gerações seguintes. Mas depois de se saber, não se pode não saber, ou seja, não podemos transitar do exercício do papel de Mafalda para o dos seus pais conforme eram. O que conhecemos do mundo viaja connosco, somos também o que conhecemos.
Quino deixou às gerações futuras um modelo de crítica acutilante e, em simultâneo, empática. É no quotidiano formal, nesse sítio onde efectivamente se manifesta a nossa existência e o seu impacto na relação com os outros, que a atenção, as perguntas, a reivindicação e a responsabilização acontecem e são necessárias.
Fiel ao modelo de crítica de Quino e responsável também pela sua continuidade, no compromisso entre o ideal e a realidade como qualquer adulto estabelece, perplexa, pergunto como, meio século passado sobre as primeiras dúvidas de Mafalda estamos ainda tão próximo do diálogo de Susaninha com a amiga: «Quando for grande quero ter muita roupa!», diz Susaninha. Mafalda responde: «E eu muita cultura!». Susaninha: «Prendem-te por saíres à rua sem cultura?». Mafalda: «Não». Susaninha termina: «Experimenta sair sem roupa!».
Uma sociedade assente no culto da imagem e cujo sucesso se mede em reconhecimento mediático e seus dividendos, e da qual o epítome é Trump, o monstro que criámos apesar de lhe recusarmos a paternidade, não é um bom legado.
O mundo abisma-nos nas suas circunstâncias como se não fizéssemos parte do nexo de causalidade: revemo-nos em Mafalda, mas não conseguimos encontrar em Manelinho, Ricardo Salgado, nem em Susaninha, Joana Ferrer. No entanto, é Manelinho quem vende «feijões sem complexos», por estarem fora de prazo, ou «marmelada para executivos» quando um frasco de cera líquida lhe cai por cima, e cujos sonhos acordados são um delírio de «mais, mais, mais!». E é Susaninha quem, em cada decisão, mina o poder e o lugar da mulher paulatinamente conquistados.
Resta saber se neste crepúsculo democrático, ao enterrarmos Quino, não estamos também a despedir-nos das nossas mais elevadas aspirações civilizacionais. Se não conseguiremos ser mais do que o «bestaplaneta» dos pesadelos de Mafalda.