Segundo uma antiga e piedosa tradição, quando Pedro fugia de Roma, por causa de uma nova perseguição aos cristãos, apareceu-lhe Jesus Cristo. O primeiro Papa, surpreendido pela aparição, teria perguntado ao Mestre aonde ia, ou seja, em latim, Quo vadis? Jesus teria respondido que voltava à cidade eterna, para sofrer, de novo, a sua paixão e morte. Ao ouvir estas palavras, Pedro percebeu que o seu lugar era junto das suas ovelhas, mesmo que o preço a pagar fosse o do martírio, que de facto aconteceu, onde hoje está a basílica que tem o seu nome.

A moral desta lenda, sem fundamento bíblico, é óbvia: o Papa, os bispos e os padres, devem arriscar a sua vida, num contexto de perseguição ou pandemia, para proporcionar ao povo os bens espirituais de que carecem para a sua salvação. Mas, então, dever-se-iam ter mantido as missas e demais celebrações religiosas, as aulas de catequese e demais reuniões, mesmo sabendo das prováveis consequências nefastas para a saúde pública?!

Alguns cristãos, certamente muito piedosos, entendem que a suspensão das celebrações penitenciais e eucarísticas traduz, em última análise, falta de fé. Pensam também que, na atitude de suspender essas celebrações, prevaleceu uma visão mundana, que tende a agradar ao mundo, em vez da visão sobrenatural que seria expectável. No seu entendimento, é agora, precisamente, que o país precisa não de menos mas de mais missas. Talvez até desejassem uma multitudinária peregrinação nacional a Fátima… Nas redes sociais, não falta quem proteste contra a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que suspendeu as celebrações penitenciais e eucarísticas.

Sem querer ofender a piedosa intenção desses fiéis, há, contudo, que perguntar: seria coerente que a Igreja portuguesa, ao mesmo tempo que se empenha em debelar a actual crise, promovesse acções que iriam, previsivelmente, propagar a pandemia?! Seria lógico que a Igreja entrasse em estado de negação em relação à realidade, desentendendo-se das insistentes e reiteradas recomendações das entidades sanitárias, não obstante o seu inegável fundamento científico?! Uma atitude tão irracional, como seria a de querer pôr termo a uma epidemia ao mesmo tempo que se favoreceria a sua expansão, poderia ser tida como de verdadeira fé?!

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Os juízos prudenciais não costumam ser consensuais. Um exemplo histórico: a atitude de Pio XII em relação ao nazismo e ao Holocausto. Ainda hoje se debate se o comportamento do romano pontífice, nessa ocasião, foi prudente ou, pelo contrário, pecou por insuficiente. Se tivesse mais abertamente denunciado o regime nazi, teria contribuído eficazmente para a salvação de vidas inocentes ou, pelo contrário, teria agravado a situação?!

De facto, a condenação pública, pelo episcopado holandês, do nacional-socialismo alemão, não só não melhorou a difícil situação que se vivia nesse país, durante a ocupação nazi, como provocou uma mais violenta perseguição dos judeus e dos católicos nos Países Baixos. A essa retaliação do exército alemão se ficou a dever, entre outras, a morte da filósofa Santa Edith Stein, a religiosa carmelita alemã, de origem judaica, que se tinha refugiado na Holanda e que foi, depois dessa tomada de posição do episcopado neerlandês, deportada e morta num campo de concentração nazi.

Dito isto, é óbvio que, qualquer que fosse a atitude adoptada pela CEP, seria sempre condenada pela opinião pública: por ter cão, ou por o não ter. Se se tivessem mantido as missas e as demais actividades religiosas, é certo e sabido que muitos reprovariam hoje a insensatez de medidas potencialmente favoráveis à propagação de um vírus que pode ser letal. Qual seria a reação da opinião pública se soubesse, por hipótese, que uma pessoa de idade tinha falecido por ter sido contaminada numa missa, ou por contágio de um neto, infectado numa aula de catequese?! Num cenário desses, a Igreja seria acusada de conivência com essa morte ou, pelo menos, de negligência.

É verdade que a Igreja não deve pautar a sua acção em função do volúvel juízo da opinião pública. Mas, em termos morais, nenhuma pessoa razoável consideraria que o bem espiritual decorrente da participação numa celebração eucarística justificaria a perda de uma vida humana. Note-se que, em circunstâncias normais, um fiel doente, ou pessoa de muita idade, está já dispensada da assistência à missa dominical, sem culpa nem prejuízo da sua alma.

A virtude cristã deve ser heróica, como heróicos foram os mártires que a Igreja venera, mas sem nunca deixar de ser razoável. Um modo de proceder que não é racional não é cristão, nem virtuoso, nem sequer humano. O heroísmo é um justo meio entre a cobardia e a imprudência: uma pessoa temerária não é virtuosa, como também o não é um cobarde. A graça sobrenatural não anula, nem substitui, a razão humana, pressupõe-na e sublima-a, mas sem nunca a anular. Agir de forma irracional nunca é virtuoso, nem cristão, até porque o autor da graça também o é da natureza e da razão.

Este é, também, o exemplo de Cristo, segundo os Evangelhos. Jesus cumpria, habitualmente, as ordens emanadas das autoridades religiosas e civis do seu tempo: ia, como qualquer judeu piedoso, a Jerusalém, por ocasião da páscoa judaica e pagava os impostos, porque se deve dar a César, o que é de César, e a Deus, o que é de Deus (cf. Mc 12, 17). É certo que foi motivo de escândalo em relação à observância do sábado, mas não porque não cumprisse essa lei religiosa, mas porque a interpretação que dela faziam os fariseus não correspondia ao seu verdadeiro sentido. Ele próprio afirmou que não tinha vindo revogar a lei, mas dar-lhe pleno cumprimento (cf. Mt 5, 17).

Nas vésperas da sua paixão e morte, Cristo afastou-se da Judeia, porque nessa região corria perigo de vida (cfr. Jo 10, 39-40). Ou seja, mesmo sendo Deus, Jesus age com prudência humana, quando podia ter recorrido aos seus poderes sobrenaturais para fazer frente a esse perigo. Quer isto dizer, salvo melhor opinião, que o cristão deve ser prudente e acatar as recomendações emanadas da legítima autoridade civil e religiosa.

Se a Igreja proíbe, no contexto da actual pandemia, a celebração comunitária da missa dominical, com certeza que os fiéis, obedecendo a essa indicação dos seus bispos, alcançam graças espirituais análogas às que receberiam se participassem presencialmente na Eucaristia. Só um escrupuloso ficaria inquieto com uma tal falta que, na realidade, o não é, pois falta seria desobedecer, consciente e voluntariamente, à autoridade eclesial. De um ponto de vista espiritual, costuma-se dizer que, nestes casos excepcionais, a Igreja supre. Portanto, o cristão que não foi à missa, por absoluta impossibilidade, não só não pecou como recebeu uma graça equivalente à que teria recebido se tivesse participado na Eucaristia. Aliás, não só não peca, como fica beneficiado com o mérito do seu sacrifício e da sua obediência.

Mas, a regra de prudência não admite excepções? Claro que sim. Depois de Jesus se ter afastado da Judeia, chegou-lhe a notícia de que um seu amigo, Lázaro, estava doente. As suas irmãs, Marta e Maria, pediram-lhe que fosse ter com ele e, por isso, Jesus decidiu regressar à Judeia. Esta atitude do Mestre escandalizou os seus discípulos, que lhe disseram: “Rabi, há pouco os judeus procuravam apedrejar-te e tu queres ir outra vez para lá?!” (Jo 11, 8). Mas, vendo que Cristo não desistia desse seu heróico propósito, pondo em risco a sua vida, Tomé disse: “Vamos nós também, para morrermos com ele!” (Jo 10, 16).

A conclusão parece evidente: se a falta de prudência não é virtuosa, o seu excesso também não. Os profissionais de saúde não podem deixar de prestar assistência aos doentes, não obstante o perigo de contágio. O mesmo se diga dos bispos e sacerdotes, porque é nestes momentos que os fiéis mais precisam do apoio dos seus pastores. Evitem-se ajuntamentos desnecessários, mas não se impeça o acesso aos sacramentos, sobretudo da Unção dos doentes, da reconciliação e penitência e da Eucaristia. Se as lojas de bens essenciais não fecharam e as bombas de gasolina também não, não há imprudência em manter as igrejas abertas ao público, observadas as normas de segurança vigentes. Como Cristo, que regressou à Judeia, onde sabia que a sua vida corria perigo de morte, para ressuscitar Lázaro e consolar as suas irmãs, também os ministros católicos devem socorrer os fiéis necessitados da administração dos sacramentos, mesmo com risco da própria vida.

A obediência dos fiéis aos seus legítimos pastores e a heróica disponibilidade dos ministros – mais de vinte padres morreram já, em Itália, vítimas desta pandemia! – seja, pois, neste momento de provação e dor, uma ocasião de testemunho de comunhão eclesial e de caridade cristã. Neste tempo quaresmal, queira Deus que a ninguém falte a fraterna solicitude de Marta, nem a piedosa oração de Maria. Que todos os fiéis chamados, por razão do seu ofício, a intervir junto dos mais necessitados, como profissionais da saúde ou como padres, estejam dispostos a servi-los, até ao sacrifício da sua saúde e vida. E que, pelo seu heróico testemunho, todos os homens de boa vontade possam reconhecer, junto dos que agora mais sofrem, a presença daquele de quem, há dois mil anos, se disse: “Vede como ele o amava!” (Jo 11, 36).

NOTA. Para quem queira saber, não tenho nenhum inconveniente em declarar que não só continuo no meu posto como estou disponível para atender quem precisar dos meus serviços. Celebro todos os dias a Missa para pequenos grupos de fiéis, atendo de confissão todos os que o desejarem e amanhã, com as devidas autorizações eclesiais e não só, oficiarei um casamento na igreja da paróquia onde vivo e colaboro. Só deixei de prestar assistência às instituições educativas de que sou capelão, porque as mesmas se encontram encerradas.