Sim, eu sei que uma mãe que é rainha não é Rainha Mãe, a não ser que seja a viúva do anterior monarca e mãe do actual soberano. Assim o foi, por exemplo, durante a sua longa viuvez, a mãe da anterior Rainha, mas não Isabel II que, até à sua morte, foi monarca por direito próprio, porque filha herdeira do Rei Jorge VI. Não obstante a aparente imprecisão terminológica, a verdade é que Isabel II foi, para os seus súbditos, Rainha e Mãe. Por isso, a sua falta é sentida pelos britânicos como uma certa orfandade.
Sobre Isabel II muito se disse já, mas talvez não sejam excessivas, em sua memória, algumas considerações.
Uma primeira nota para sublinhar a sua discrição. Isabel II estava no extremo oposto dos políticos populistas, que muito gostam de exibir as suas vidas e emoções, ignorando o mais elementar respeito pela privacidade própria e alheia.
Mesmo em momentos dolorosos, como foi o do falecimento do Príncipe Filipe, a Rainha não exteriorizou os seus sentimentos, não fez declarações sobre uma tão longa e certamente complexa convivência conjugal (não há casais sem problemas: todos os têm, mas nem todos sabem, ou querem, resolver os problemas que têm). Infelizmente é moda, também entre aqueles que, como os políticos, deviam dar exemplo, a indiscrição de confidenciar publicamente as tendências mais íntimas. Isabel II manteve sempre uma atitude que pode parecer de frieza emocional, ou de distanciamento social, mas que é de contenção e reserva, como compete a alguém chamado à função que desempenhou.
A discrição foi também observada em relação à sua morte, cuja causa não foi divulgada. Era sabida a sua muita idade, mas dias antes tinha dado posse, como tantas vezes fizera a outros tantos primeiros-ministros, à nova chefe do Governo de Sua Majestade e, por isso, nada fazia prever a sua tão súbita morte.
Curiosamente, até a imprensa sensacionalista, sempre tão coscuvilheira nestas questões, soube respeitar este laconismo oficial, precisamente porque Isabel II sabia dar-se ao respeito e sempre manteve uma intransponível fronteira entre a sua vida privada e a sua função pública. A sua morte é, certamente, um facto de importância nacional e internacional, mas a causa da mesma faz parte da sua privacidade e, portanto, não tem por que ser divulgada.
Uma outra nota relativa a Isabel II é a que respeita às suas opiniões: não tinha! Ou melhor dizendo, não as manifestava em público. Numa sociedade tão dividida por tantas tensões e confrontos ideológicos, a monarca do Reino Unido não se pronunciava sobre questões opináveis. Certamente tinha as suas próprias ideias sobre essas matérias, mas abstinha-se de as publicitar, porque sabia que, enquanto Rainha, não podia tomar partido em matérias políticas ou sociais discutíveis: só permanecendo à margem dessas discussões, a todos podia unir e integrar no superior interesse nacional.
Não obstante o esplendor da monarquia, este regime é muito mais barato do que o republicano: em 2013, o Orçamento do Estado português canalizou para a presidência da República 15.130.000 euros, enquanto a Casa Real espanhola, no mesmo ano, ficou-se pela metade dessa verba: 7.933.710 euros. Mas o soberano não é uma figura decorativa, mas o garante da ordem constitucional, bem como dos direitos humanos. Enquanto chefe da igreja anglicana, o monarca britânico compromete-se a salvaguardar a doutrina cristã, no respeito pela liberdade religiosa de todos os súbditos, bem como os princípios universais da moral natural, nomeadamente a defesa do direito à vida desde a concepção e até à morte natural. Foi por este motivo que o Rei Balduíno da Bélgica, enquanto monarca e cristão coerente, se recusou a promulgar a iníqua lei do aborto.
O titular do trono, ao contrário de um presidente republicano, não pode ser de direita, nem de esquerda, não pode ser progressista, nem conservador, não pode ser regionalista, nem centralista, não pode ser de ninguém em particular, para ser de todos por igual. É esta abrangência universal que melhor justifica a conveniência da chefia de Estado não estar conotada – como a bandeira ou o hino nacionais – com nenhuma ideologia política que, por ser partidária, nunca é, nem pode ser, de todos e para todos.
Qualquer chefe de Estado eleito é, sempre, uma pessoa de partido, que exerce a sua magistratura em função dos interesses a que ficou a dever a sua eleição: por mais que se esforce por ser o presidente de todos e para todos, será sempre o presidente de alguns, contra os que o não elegeram, nem nele se revêem. Pelo contrário, o monarca constitucional, embora não tenha poder, exerce uma função moderadora e de representação de toda a nação, sobretudo pela sua identificação com a história nacional, que encarna, enquanto herdeiro dos anteriores soberanos. Nos regimes monárquicos, ao contrário dos republicanos, há uma continuidade dinástica que se confunde com a própria história e identidade nacional.
Isabel II foi também um exemplo inspirador para muitas famílias, enquanto filha, irmã, mulher, mãe e avó. Na monarquia, a família real está ao serviço do Estado e, por isso, têm notoriedade os acontecimentos sociais mais importantes, como os casamentos e os nascimentos dos mais próximos na linha de sucessão ao trono. Enquanto a monarquia é, por natureza, familiar, o regime republicano é essencialmente individualista, porque o chefe de Estado desempenha, por si só, a missão para que foi escolhido e o seu cônjuge e descendentes não partilham esse seu cargo pessoal.
Mesmo que o trono só seja ocupado pelo monarca e pelo seu cônjuge, os restantes membros da família real devem também desempenhar funções oficiais, na medida em que a chefia de Estado está sediada na família. É este especial serviço público que justifica que aos parentes próximos do soberano seja dado tratamento especial. E, se algum membro da família real não quer comprometer-se com essas mais gravosas obrigações decorrentes do seu estatuto, pode e deve ser dispensado desses deveres, sendo-o também das honras correspondentes. Foi o que aconteceu, por exemplo, ao Rei Eduardo VIII que, para poder casar com quem queria, teve de abdicar do trono. Se noblesse oblige, a realeza obriga muito mais e, só pode ser ‘alteza’ quem esteja disposto a viver a elevação moral e a exemplaridade social que esse honroso título não só expressa como, sobretudo, exige.
Toda a vida da Rainha foi de serviço e de entrega ao seu país. Logo que, pelo inesperado e prematuro falecimento de seu pai, o Rei Jorge VI, se viu obrigada a ocupar o trono britânico, Isabel II comprometeu-se, publicamente, a dedicar toda a sua existência, que foi longa, a essa missão. Por isso, enquanto outros monarcas, por razão da sua avançada idade, ou outros motivos, abdicaram, Sua Majestade britânica permaneceu firme no seu posto até ao fim. Palava de Rainha não volta atrás.