O governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, declarou heroicamente que “a vida humana não tem preço”. Foi um grito de guerra de um homem cujo estado foi subjugado por esta pandemia. Na verdade, a maioria dos Estados e líderes de todo o mundo concordou com ele. Ao impor Estados de Emergência e confinamentos generalizados, a mensagem era clara: salvaremos vidas humanas a qualquer custo.
Isto não só soa bem como dá alguma esperança às pessoas que se sentiam já oprimidas pelo medo e pelo pânico. O Estado cuidaria delas. No entanto, é este realmente o caso? A vida humana é mesmo inestimável? Deveria sê-lo e a que custo para a sociedade e para as gerações futuras?
Estou ciente de que estas perguntas são desconfortáveis e de que posso estar a pisar um campo de minas moral. O próprio facto de eu as fazer irá, sem dúvida, atrair a ira de todos aqueles que têm pais mais velhos ou entes queridos considerados de “alto risco”. A esquerda política ficará em pé de guerra. Assim como a Igreja Católica, para a qual toda a vida é considerada sagrada.
Contudo, peço ao leitor que me acompanhe e que continue a ler. Talvez as perguntas não sejam tão insensíveis e sem coração quanto parecem à primeira vista. Sendo uma verdadeira crente da liberdade de expressão, defendo encarecidamente que não há perguntas que não se possam fazer. O questionamento permite-nos refletir sobre a maioria das suposições – pelo menos deveria ter esse propósito. Não deverá haver nada que seja considerado apenas pelo valor aparente, só porque soa bem e nos faz sentir seguros. Claro que é mais fácil seguir o que a “maioria” pensa do que nos darmos ao duro trabalho de pensar por nós mesmos.
À medida que as sociedades se debatem com a ideia de sair do confinamento, precisamos de pensar melhor quanto vale uma vida humana. Aliviar o confinamento irá, provavelmente, provocar uma segunda onda de infeções e de mortes. Seria ingénuo pensar de outra forma. Como sociedade, quantas mais vidas estamos dispostos a perder até considerarmos a opção de novamente impor medidas gerais ou parciais de confinamento, talvez exigindo até maiores pacotes de incentivos?
Voltando às palavras do governador Cuomo, as pessoas parecem estar aferradas à noção de que não há preço para a vida humana. Todavia, passamos o tempo todo a apreçar a vida humana. Fazemo-lo quando decidimos não aplicar todo o dinheiro do mundo na premissa de reduzir o risco de morte até ao mais baixo possível. Poderíamos, por exemplo, construir cada carro com as máximas condições de segurança ainda que pudesse vir a custar um milhão de dólares; poderíamos tratar todos os voos como se se tratassem de lançamentos de foguetões, verificando e revendo tudo ao pormenor antes da descolagem. A razão pela qual não fazemos isto é porque, afinal, há um preço para a vida humana. O facto de estas serem trocas implícitas não vem ao caso. Na realidade estimámos um valor implícito para o tempo e dinheiro necessários para garantir uma perda mínima de vidas.
Acrescentaria que, no limite, salvar vidas num sítio é sacrificar vidas num outro. Se cada carro custasse realmente um milhão de dólares então quanto dinheiro deixaria de ser utilizado noutra situação que pudesse vir também a salvar vidas? Ou se cada carro custasse um milhão de dólares, quantas vidas não seriam eventualmente sacrificadas porque haveria decerto menos carros para transportar comida, medicamentos, doentes etc.? É sempre uma questão de recursos limitados…
Até agora, não houve grande compromisso entre a economia e a saúde pública. A maioria, à esquerda e à direita, concorda que o objetivo de ajudar a economia e o objetivo de salvar vidas apontaram ambos na direção de alguma forma de confinamento. Nenhum sistema de saúde estava preparado e foi perdido um tempo precioso quando os testes em massa e o rastreamento de contactos poderiam ter estado amplamente disponíveis. Um cenário de “não fazer nada” teria levado (de acordo com algumas projeções) a 2 milhões de mortes nos EUA e 500 000 na Grã-Bretanha. Se o que realmente importa é a economia, o confinamento constituía, mesmo, a melhor opção.
Mas, à medida que o confinamento tem vindo a continuar e os custos económicos se vêm tornando mais pesados, há que chegar a um compromisso. Não serão muitos os que argumentariam que devemos manter o confinamento total até o vírus desaparecer completamente ou até termos uma vacina que nos proteja do risco de contaminação.
Seguindo a sugestão do presidente Trump, alguns começam já a argumentar que “não se morre da doença, morre-se da cura”. Nas últimas semanas, nos EUA, muitos têm protestado, participando em manifestações para exigir uma “libertação” do jugo das medidas de restrição. Quando os números do desemprego atingem níveis históricos, quando as pessoas são forçadas a fechar os seus negócios e as dívidas aumentam, os custos de salvar vidas começam a parecer demasiado altos. Há quem alegue que deveríamos apenas deitar os dados, arriscar a abrir tudo e deixar que o vírus fizesse o seu caminho natural, atravessando a sociedade, recolhendo apenas aqueles que são mais vulneráveis.
Talvez seja um erro pensar desta forma – economia versus vidas. É uma equação que serve apenas para polarizar o debate entre os democratas, que apoiam o confinamento, e os republicanos, que preferem um mundo de regresso ao “negócio habitual”. Em última análise, trata-se de um falso compromisso entre prosperidade humana versus prosperidade humana. Aqueles que lutam pela redução das medidas de restrição não pretendem necessariamente dizer que dão mais peso à economia. A verdade é que muitos querem e precisam desesperadamente de recuperar os seus empregos. Mas também querem que as pessoas voltem a poder casar-se, ir a funerais, ter acesso a operações que foram proteladas, passar tempo com os pais idosos e com os entes queridos e assim por diante.
E o que dizer daqueles que sempre estiveram contra o confinamento? Reafirmo, iludem-se. Há quem compare os custos de um mundo antes das políticas de confinamento (e antes do vírus) com os custos de nada fazer, ou fazer muito menos, em termos de distanciamento social e de deixar o contágio explodir. Como estaria a economia numa situação em que, literalmente, todos os que conhecemos conhecessem alguém que tivesse morrido? Onde estará a economia, então, quando acabarmos de dar carta branca à curva exponencial através do contágio? Normalmente, as pessoas não fazem esta comparação. Apenas comparam os óbvios e assustadores efeitos económicos e sociais do confinamento, que só aumentarão nos próximos meses, com a memória que têm do mundo do passado. Mas esse mundo já não existe, pelo menos até encontrarmos um tratamento eficaz ou uma vacina, o que ainda pode levar algum tempo.
Num cenário de “não fazer nada”, veríamos centenas de milhares morrerem ou, em alguns países, milhões. À medida que as pessoas fossem adoecendo, teriam inundado os hospitais e isto teria causado enormes danos colaterais. Os danos económicos não podem ser afastados dos efeitos de todas as vidas perdidas. As mortes reduzem a capacidade produtiva da economia.
É verdade que as pessoas estão dispostas a aceitar um determinado número de mortes para que a vida possa voltar ao “normal” ou quase normal. Sabemos que, num ano mau, a gripe pode matar até 80 000 pessoas nos EUA. Se a Covid-19 acabar por matar cerca de 80 000 nos EUA, muitos argumentarão que exagerámos e que afinal não tinha havido necessidade de confinamento e de um estímulo fiscal tão extremo. 80 000 é uma estatística; é um marco que aprendemos a aceitar. Ninguém se preocupa muito com isso a menos que perca um ente querido.
Mas, e se nos dessem a opção de sacrificarmos cem pessoas para nos livrarmos deste vírus? Muitos de nós, evidentemente, recuaríamos. Quando encaramos os números como estatística, não nos envolvemos emocionalmente. No entanto, quando está em causa uma única vida humana identificável torna-se intolerável. Lenine disse um dia: “Uma morte é uma tragédia, um milhão uma estatística”.
Rudy Giuliani declarou recentemente que 80 000 não são assim tantos. No entanto, quando ele era presidente da câmara de Nova Iorque, o 11 de setembro “apenas” matou 2800 pessoas, decisivamente bem menos do que a gripe. Se alguém tivesse afirmado à época, ou agora, que não eram assim tantas pessoas, seria considerado um monstro. Tudo se resume à perceção que temos do problema e à forma como o enquadramos.
Um apresentador de notícias da Fox News afirmou: “fizemos tudo isto para salvar 80 000 vidas. Disseram-nos que seriam muitas mais”. Eis um bom exemplo de alguém que não pensa. Ignora completamente o facto de que o número pode ser assim tão “baixo” porque os americanos passaram um mês em quarentena. Poderíamos fazer esta analogia: eu digo que preciso de um extintor de incêndio e adquiro um. Há um incêndio na minha casa. Eu uso o extintor de incêndio e, no fim, são poucos os danos. Nessa altura, o meu vizinho pergunta-me por que razão fui pateta o suficiente para ter comprado um extintor, já que quase não houve danos em consequência do incêndio. Isto é conhecido como o primeiro paradoxo da quarentena. Se o distanciamento social funcionar diminuindo o contágio, aqueles que sempre estiveram contra o distanciamento social sentir-se-ão justificados por nos terem acusado de exagerarmos.
Atribuir um valor pecuniário à vida humana é tabu. Mas os políticos serão forçados a fazê-lo. Terá de haver um limite sensato para o quanto poderemos gastar para conter uma pandemia. As dívidas terão de ser pagas, e há um preço a pagar que deixaremos às gerações futuras. Talvez mais vidas pudessem ter sido poupadas ao longo dos tempos se todo o dinheiro gasto até hoje tivesse sido destinado à investigação médica ou a tornar as estradas mais seguras. Quanto tempo será necessário para controlar a pandemia, quanto tempo levará a economia a recuperar e quão profunda será a recessão ainda são incógnitas. E isto é o que faz com que, nestas condições tão incertas, seja muito difícil estimar o preço da vida. Mas isto terá de ser feito.