A Covid-19 não tem fronteiras. É, pois, um pilar da democracia. No entanto, nem todos os países serão afetados da mesma forma. Dependendo da riqueza relativa do país, dos sistemas de saúde, das instituições económicas e políticas e dos sistemas políticos de governação, uns serão mais afetados do que os outros.

Os países em vias de desenvolvimento parecem precipitar-se em direção a uma catástrofe de coronavírus. Até agora, têm-nos feito crer que serão poupados ou talvez não tão afetados quanto os países mais desenvolvidos. Índia, Paquistão, Venezuela, Argentina, Nigéria e África do Sul têm centenas, por vezes milhares de casos por dia, mas ainda não constituem situações desastrosas. Na verdade, ainda não temos ideia da real extensão do problema devido à falta de testes e ao facto de que a maioria das pessoas acabará, simplesmente por morrer em casa, sem nunca sequer ter sido diagnosticada. Em qualquer dos casos, sabemos, por experiência, que há uma ténue linha a separar um gotejar de uma inundação.

Inicialmente, havia alguma esperança de que estes países fossem poupados a um grande surto. No entanto, não há certezas científicas suficientes que justifiquem esta afirmação. Não há provas suficientes de que o vírus seja menos transmissível em climas mais húmidos e quentes. Veja-se o exemplo de Singapura. Apesar de ter um clima consistentemente mais quente e mais húmido, foi um dos primeiros países a ser afetado e já sofreu uma segunda vaga de contágios. A haver qualquer impacto do clima sobre o coronavírus, será provavelmente modesto e, na melhor das hipóteses, atrasará a catástrofe em vez de evitá-la.

Houve ainda alguns outros factos que nos trouxeram alguma esperança. Os fatores de risco conhecidos da Covid-19, como a obesidade, a doença cardiovascular ou a hipertensão, são bem mais prevalentes nos países mais ricos. Populações mais idosas têm também maior probabilidade de sofrer as piores consequências da doença, e os países em vias de desenvolvimento que têm, em geral, uma população mais jovem. Finalmente, o vírus espalha-se tendencialmente mais rapidamente em cidades globais ligadas a redes internacionais cosmopolitas como Nova Iorque, Milão, Paris ou Londres.

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Há, todavia, factores contrários que apontam para a possibilidade de o problema da Covid-19 poder vir a manifestar-se de forma muito mais séria nos países em vias de desenvolvimento do que no mundo desenvolvido. Não obstante a obesidade e as doenças cardiovasculares estarem igualmente presentes nestes países existem, no entanto, outros problemas sérios de saúde, designadamente a malnutrição crónica, a SIDA, o sarampo, a tuberculose, a malária e outras doenças que enfraquecem o sistema imunológico e agravam a letalidade do vírus. Também os jovens não estão completamente livres de contrair a Covid-19, que pode revelar-se mortal em locais onde há manifesta falta de cuidados médicos.

Os sistemas de saúde destes países são totalmente inadequados e não têm condições para lidar com um problema destes. Muitos não conseguem lidar com as doenças infecciosas já conhecidas, quanto mais com uma doença nova e altamente contagiosa. A maioria não consegue suportar os custos do “luxo” de ter água limpa corrente e ou saneamento básico. Há uma enorme percentagem de pessoas, 75%, em países subdesenvolvidos que não têm sequer acesso a água e a sabão. Nem a juventude das populações, nem o clima quente serão suficientes para vir a compensar estes problemas.

Enquanto nos Estados Unidos existem 33 camas de UCI para cada 100.000 pessoas, o número cai para cerca de duas na Índia e no Paquistão. Na África Subsariana e na América do Sul, a situação é ainda pior. De acordo com o jornal Economist O Sudão do Sul (com uma população de 11 milhões) possui apenas 24 camas de UCI no total, o Uganda, tem mais ministros no governo do que camas de cuidados intensivos e a Serra Leoa (população: 8 milhões) tem uns meros 13 ventiladores.

Se, e quando, a pandemia atingir estes países, perspetiva-se que venham a ter de enfrentar uma onda repentina de casos que sobrecarregarão os seus sistemas de saúde, já de si fragilizados. O resultado será óbvio: a taxa de mortalidade da Covid-19, que se estima se situe entre os 0,25 e os três por cento – será muito mais alta nos países mais pobres. Além disso, e dado que os hospitais sobrecarregados não poderão dedicar-se a cuidar de outros problemas de saúde potencialmente curáveis, a taxa global de mortalidade será bem maior.

Há ainda a acrescentar a terrível situação das populações que não têm sequer um governo convencional, como as que vivem em zonas de conflito. Os campos de refugiados, que albergam cinco a seis vezes mais pessoas do que a sua real capacidade permite, e onde as práticas básicas de higiene e de distanciamento social são impossíveis de implementar, constituirão um excelente habitat para o vírus.

Num relatório recente, a ONU alerta para o facto de que, caso não sejam implementadas medidas efetivas para impedir a propagação do vírus, este poderá infetar, no pior cenário, 1,2 biliões de pessoas em África, numa população total de 1,3 biliões – e de que há cálculos que apontam que 3,3 milhões de africanos poderão vir a morrer da doença. Se isto não bastasse, temos também que considerar os efeitos indiretos: os empregos perdidos, as empresas destruídas, o aumento da dívida pública e a fuga de capitais. É perfeitamente possível que o coronavírus conduza a uma crise económica e humanitária sem precedentes.

Existem já grandes sinais de preocupação. O Brasil já ocupa o segundo lugar na tabela mundial de infeções por Covid-19. Em muitos casos, os infetados pura e simplesmente morrem em casa sem qualquer assistência médica. Em Guayaquil, a maior cidade do Equador, houve mesmo relatos de mortos por Covid-19, cujos corpos foram abandonados pelos seus familiares na rua com pavor do contágio.

As medidas de distanciamento social, que funcionaram tão bem para controlar a propagação do vírus nos países do mundo desenvolvido, não são uma opção viável para os países pobres. De facto, é completamente impossível falar-se de distanciamento social quando se vive num bairro de lata sobrelotado.

Confinamentos sociais rigorosos, para além de impraticáveis, teriam efeitos desastrosos na subsistência destas populações. São pessoas que dependem, quase sempre, do seu salário diário. Não podem, pois, dar-se ao luxo de viver em distanciamento social. Se fossem forçadas a ficar em casa, ver-se-iam rapidamente a braços com a malnutrição, com a fome e, por fim, com a morte. Bem que os governos podem dizer às pessoas para que não saiam para trabalhar… Se isso significar que as suas famílias não terão o que comer, sairão de qualquer maneira ou revoltar-se-ão. Quando a vida é uma luta diária, é difícil preocuparmo-nos com uma ameaça que nem tão pouco conseguimos ver.

Como já foi referido, muitos vivem demasiado próximos para que possam manter distância social, em apartamentos ou casas tão cheias que nem lhes permitem “auto-isolamento em casa”, e que vão às compras a mercados concorridos em que não lhes é, de todo, possível manterem-se afastados uns dos outros. Proibir concentrações de pessoas é muito mais difícil em sociedades onde a religião frequentemente envolve agregações de multidões, e em que todo o resto da vida é vivido em comunidade.

O distanciamento social existente nos países desenvolvidos depende, em grande medida, do apoio financeiro do Estado. Muitos trabalhadores ainda recebem os seus salários, ou parte deles, com a ajuda do Estado. Os sistemas de providencia e de segurança social dos países mais pobres não têm capacidade financeira para prover um rendimento substituto àqueles que se veem privados dos seus rendimentos normais. Como a maioria da população trabalha em profissões de caráter informal, nem sequer figuraria no radar do governo.

Ao longo da história, os pobres sempre foram os mais atingidos pelas pandemias. Não há razão para acreditar que esta será diferente. Os países menos capazes de impor distanciamento físico e de realizar o rastreamento de contacto são também os que possuem sistemas de saúde mais sobrecarregados e economias mais precárias. Um grande surto de Covid-19 em qualquer um deles levará a inúmeras mortes.

Deveria o Ocidente e os países desenvolvidos importarem-se? Questões morais e humanitárias à parte, sim e muito. Não será uma questão fácil. As opiniões públicas irão certamente resistir à decisão de destinar recursos ao exterior num momento em que há tantas necessidades no domínio interno.

A pandemia não conhece fronteiras. Por mais eficazes que sejam os fechos de fronteiras, estes nunca poderão conter totalmente o vírus. Haverá inevitavelmente alguma fuga, que levará a que o vírus regresse às áreas de onde já tinha sido erradicado. O nacionalismo cego é exatamente isso — cego. Para que se possa derrotar completamente a Covid-19, a doença tem de ser vencida em toda a parte do mundo.

Imagine, por um momento, um cenário em que os países do mundo em vias de desenvolvimento sejam atingidos por um grande número de mortes, pelo colapso económico e que vejam as suas taxas de desemprego e de pobreza disparar para valores exagerados. As consequências dum cenário destes para o mundo desenvolvido podem assumir várias formas: fluxos colossais de refugiados, crescimento do crime organizado ou grupos terroristas que se aproveitam do caos instalado. A dinâmica geopolítica poderá também mudar, à medida que países pobres e insolventes se vejam na necessidade de recorrer à China para resgates que trazem sempre consigo condições pré-estabelecidas.

Finalmente, as cadeias de abastecimento serão interrompidas. Os países  desenvolvidos dependem do mundo em desenvolvimento, designadamente na provisão de matérias primas e de bens do sector primário. Uma pandemia que venha a causar sérias perturbações nessas economias irá inevitavelmente causar perturbações nas economias dos países desenvolvidos.

O que deveria ser feito? Poderíamos começar por anunciar uma moratória da dívida dos países em vias de desenvolvimento e, mais cedo ou mais tarde, uma redução total ou parcial, dessa dívida. Infelizmente a pandemia atingiu os países em vias de desenvolvimento numa altura em que estes se debatem com um excesso de endividamento externo, para além das debilidades dos seus serviços nacionais de saúde. A pandemia tem vindo a  enfraquecer ainda mais as suas já frágeis economias. A procura por recursos naturais, dos quais muitos mercados emergentes dependem, entrou em declínio. O turismo afundou-se, os investidores estrangeiros fugiram e as remessas financeiras, geralmente uma rede de segurança em tempos difíceis, tendem a cair à medida que os migrantes nos países ricos vão perdendo os seus empregos.

Em paralelo, as organizações internacionais tal como o Banco Mundial e o FMI, bem como os estados desenvolvidos, devem providenciar urgentemente fundos para que os países em vias de desenvolvimento possam produzir ou adquirir equipamentos médicos. A ONU fez já uma petição de 2 biliões de dólares para combater a pandemia. Mas esta quantia irrisória é apenas uma insignificante parte do que será necessário. A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e o FMI estimam que as necessidades de liquidez e de financiamento venham a totalizar pelo menos 2,5 triliões de dólares. O FMI comprometeu a sua capacidade total de empréstimo de 1 trilião de dólares para ajudar os países mais afetados. Os líderes do G20 anunciaram uma suspensão dos pagamentos do serviço da dívida relativamente aos 73  países mais pobres, até o final do ano. Todos estes passos foram dados na direção certa. No entanto, a maioria destes países virá a precisar é de um perdão total da dívida.

Os fundos devem ser usados ​​com sabedoria. Prioridade deve ser dada aos testes e ao rastreamento de contactos, bem como no fornecimento de medicamentos, equipamentos médicos e tecnologias digitais. Quando for desenvolvido um medicamento de cura para reduzir a gravidade da doença, ou quando houver uma vacina disponível, estes deverão ser providenciados aos países de rendimentos baixo e médio, ao mesmo tempo que aos do mundo desenvolvido.

Esses países precisam de desenvolver políticas públicas que atrasem a propagação da doença, mas que não prejudiquem ao mesmo tempo os seus meios de subsistência económicos. O uso universal de máscaras deverá constituir uma prioridade. O estabelecimento de um isolamento, mais direcionado, dos idosos e de outros grupos de risco, poderá vir a permitir que os indivíduos produtivos possam continuar a trabalhar. Permitir uma melhoria no acesso à água potável e a saneamento básico constituem outras medidas a tomar. Por fim, devem ser organizadas campanhas generalizadas de informação para incentivar os comportamentos de higiene que controlam a propagação do vírus: como lavar as mãos com frequência, ficar em casa quando estiver doente e não tocar na face com as mãos.

Os países em vias de desenvolvimento não podem simplesmente esperar pelo melhor, apenas porque o pior ainda não se materializou. Como as campanhas anteriores contra a malária e o HIV provaram, é necessário um esforço global coordenado para reverter um flagelo global. O destino deles é o nosso destino. Para os países mais ricos, ajudar o mundo em vias de desenvolvimento a enfrentar o impacto da Covid-19 e dos seus custos a longo prazo, não se trata simplesmente dum ato de altruísmo humanitário. Trata-se de uma necessidade urgente.

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