Reparação é a palavra elegante, austera, moralista, que em linguagem comum e terra a terra significa pedir — ou melhor, exigir — muito dinheiro. Os países das Caraíbas e de outras regiões das Américas utilizam-na para tentar encurralar, pressionar, as autoridades dos outros países ocidentais a abrirem de par em par os cordões à bolsa.

A sua arte de pedir dinheiro às antigas potências coloniais e a famílias ocidentais que tenham feito as suas fortunas durante esse período, assenta em dogmas e em várias convicções aparentemente razoáveis. Sê-lo-ão? Se olharmos atentamente perceberemos que nem os dogmas nem as convicções se aguentam nas pernas histórica e logicamente falando. Para o demonstrar e para conhecermos a fundamentação dos pedidos de reparações é útil analisar a recente entrevista do presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, à ITV (ver este vídeo a partir do minuto e 15 segundos)

O presidente Ali explicou nessa entrevista que por terem estado envolvidos na escravatura e por a terem promovido, os britânicos deveriam pagar muitos biliões de dólares ao seu país e a outros. Perguntado pelo entrevistador se faria sentido um actual cidadão do Reino Unido pagar por algo que um distante antepassado seu havia feito, ou seja, e dito de outra maneira, por que razão ainda teria de carregar esse fardo, o presidente da Guiana considerou que esse pagamento não era fardo nenhum porque os britânicos — todos os britânicos — eram os actuais beneficiários do tráfico de escravos. Deviam pagar porque actualmente ainda colheriam os benefícios daquela que teria sido, na opinião do presidente Ali, a maior indignidade da história humana, não comparável com qualquer outra violência: o tráfico transatlântico de escravos. Teria sido essa violência, classificada como maior do que qualquer outra, que teria permitido o desenvolvimento económico e a riqueza do Reino Unido e dos países europeus, enquanto a Guiana e outras antigas colónias iam ficando para trás.

Isto que o presidente Ali afirma a respeito das supostas dívidas históricas do Reino Unido é afirmado por outros políticos e activistas woke a respeito dos outros países da Europa Ocidental, Portugal incluído. Ora, serão estas teses verdadeiras? Estaremos perante uma causalidade tão geométrica e tão clara como pretende e defende o presidente da Guiana?

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A resposta é frontalmente negativa. Comecemos pela questão da supostamente incomparável violência do tráfico transatlântico de escravos, um postulado importante porque é nessa alegada excepcionalidade que assenta o suposto direito a um pedido de reparação que, de outro modo, a não ser assim, seria igualmente aplicável a todas as brutalidades históricas, numa inconcebível infinidade de reparações. Ora, se olharmos para trás sem preconceitos e de uma forma informada e intelectualmente honesta teremos de reconhecer que houve, no passado, milhares de grandes violências. Uma verdadeira legião de abusos e barbaridades. Considerar que não terá havido na história do mundo violência comparável à da escravatura transatlântica é uma afirmação absolutamente subjectiva e, a meu ver, errada, porque infelizmente houve violências idênticas ou ainda maiores, se bem que isso seja indemonstrável, num sentido ou no outro. Como toda a gente sabe não há uma escala de Richter da violência que nos permita graduar a abjecção e a brutalidade. No entanto, os activistas são perentórios na afirmação de que o tráfico transatlântico de escravos suplanta qualquer outra atrocidade como se isso fosse um dado adquirido e cientificamente atestado. E, ao fazê-lo, enganam as pessoas e procuram alicerçar e justificar, pela suposta unicidade, as suas reivindicações reparacionistas.

Outra ideia errada é a de que a riqueza dos países da Europa Ocidental decorreria geometricamente, num rígido esquema de causa-consequência, do tráfico transatlântico de escravos e da subsequente escravidão nas Américas, com a correspondente pobreza dos países onde ela se praticou. Essa suposta decorrência é tão primária e tão errada que até dá dó. A riqueza dos países tem histórias muitíssimo complexas e não decorre única e exclusivamente, nem sequer principalmente, da exploração do trabalho escravo. Se decorresse, dessa forma mecânica, a realidade seria outra. Pense-se no caso da Suécia, um dos mais ricos países ocidentais, cujo envolvimento na escravatura transatlântica foi diminuto — o mais diminuto de todos. Pense-se no caso inverso de Portugal que tendo sido o maior transportador de escravos através do Atlântico e o possuidor de uma das mais importantes colónias americanas, o Brasil, é, não obstante, o mais pobre dos países da Europa Ocidental. A riqueza das nações, repito, é um rio muito longo, muito sinuoso e acidentado, e com muitos e diversos afluentes.

E o que digo a respeito da riqueza digo, também, a respeito da pobreza. Será a escravatura, a nível nacional, um causador inevitável de pobreza? Os Estados Unidos da América foram o maior depósito de escravos negros do mundo ocidental (cerca de 4 milhões em meados do século XIX) e, no entanto, são um dos países mais ricos do mundo. Por outro lado, muitos dos países pobres do mundo nunca estiveram envolvidos na escravatura transatlântica ou, até, na história colonial, como sucede, por exemplo, com a Mongólia. Acreditar que a riqueza e a pobreza são consequência inescapável da escravatura é uma história da carochinha de fabrico académico-marxista, cujas raízes vão até Adam Smith, que tem sido usada ao longo do tempo para fins de reivindicações e lutas políticas. A pobreza e a riqueza dependem de muitos factores, e estão muitas vezes ligadas à história das ciências e das técnicas, como é evidente, por exemplo, com muitos países árabes, cuja actual opulência se prende com a invenção do motor de combustão interna e com os combustíveis fósseis.

O presidente da Guiana, à semelhança de outros políticos woke — e justamente por essa razão interessa voltarmos à sua entrevista na ITV — tem ainda uma terceira tese para justificar o pedido de reparações. Diz ele que o Reino Unido ainda beneficia actualmente do que aconteceu nos séculos XVI a XIX, isto é, ainda beneficia do processo de colonização. E, sim, houve duradouros ganhos materiais e outros para o Reino Unido e para o resto do Ocidente. E houve perdas, também. Mas não será isso, e apesar de tudo, também verdade, ainda que em graus e maneiras diferentes, para a Guiana? Não estará ela a beneficiar de alguns aspectos da história passada, história que não se resume às formas particularmente duras de exploração de uma economia de plantação? Quererá o presidente Mohamed Irfaan Ali que o seu país regresse ao tempo e ao modo de vida dos caçadores-recolectores?

Com esta última pergunta não quero sugerir que as sociedades de caçadores-recolectores não tivessem história ou que fossem absolutamente imutáveis e sem qualquer inventividade. Mas tenho a certeza absoluta de que a sua história, como, aliás, a do resto do continente americano, teria sido muito diferente e técnica e cientificamente muito menos avançada se lá não tivessem desembarcado Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral e milhões de outras pessoas brancas e negras vindas do Velho Mundo. E isso é algo que os que exigem reparações fingem que não veem para, nessa curiosa e mais do que selectiva cegueira, poderem continuar a contar as suas histórias da carochinha a jovens e adultos ingénuos.