Há tempos que deixam saudades. Como as saudades dos tempos em que aqueles políticos, movidos por um azedo perfume anticlerical criticavam ferozmente a Igreja na praça pública e ridicularizavam as declarações dos seus mais altos dignitários, recomendando que se metessem na sua vida. Que saudades. Hoje, são mesmo os políticos que se assumem como católicos que fazem esse papel.

No final de Agosto, o Papa pediu “para combater o tráfico de seres humanos” e disse que quem trava o caminho dos migrantes e quem opera, “de forma sistemática e com todos os meios, para fazer recuar os migrantes” comete um pecado grave. Passado uns dias, o Patriarca de Lisboa, numa entrevista, afirmou que era contra a definição de uma política de quotas para a imigração. No mesmo dia, André Ventura respondeu-lhe. E não se limitou a dizer que não concordava. Faz-nos um favor e deixou o recado: “Eu não tenho a pretensão de liderar consciências, nem tenho a pretensão de liderar as almas. Eu só tenho a pretensão de liderar o povo português e de liderar o país”. Ora, se André Ventura não quer liderar as almas e, intuo eu, tem nos corpos o seu objetivo. Começo a pensar que o melhor é deixar a dieta, porque não vou estar eu a trabalhar para dar nutrientes e “xixa” da boa a esses corpodependentes. Até porque eu não devo ter assim uma carne tão branca.

Atenção, eu não quero estar aqui a desbaratar ótimas ideias editoriais mas, se um dia quiserem fazer uma edição tipo Resumos Europa-América para as declarações deste líder político, eu não me importo de dar já uma ajuda e explicar o subtexto destas declarações.

Quando a frase é “quem tem de governar, tem de governar. Quem tem de fazer política, tem de fazer política. Quem tem de liderar consciências, tem de liderar consciências. Eu deixo isso para as Igrejas” o que se deve ler é o seguinte: “isso da religião é uma coisa super bonita, tem frases lindas, aliás até tenho duas ou três imagens desse tal Jesus, e da mãe dele, lá em casa, mas quando chega a hora de fazer coisas a sério não se metam com tretas, está bem?”, ou então “isso da religião tem a ver com moral e amor ao próximo. Não é bem a nossa especialidade na política”. O que, lá no fundo, não deixa de ser um contrassenso para quem se propõem terminar com “esta bandalheira”.

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Mas a obra de André Ventura é demasiado complexa e a análise a estas declarações não ficam completas sem a necessária intertextualidade da obra venturiana. Por exemplo, em 2019, André afirmou que “ter o apoio dos cristãos, dos católicos, é um orgulho enorme”, que “a Igreja tem vindo cada vez mais (…) a pedir que os cristãos tenham intervenção no espaço público”, e que “não podemos estar sempre a dizer para ter intervenção, mas depois (…) queremos que as instituições cristãs e católicas estejam em silêncio”. Doutro modo, ainda este ano, após a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, Ventura publicou um vídeo onde criticava quem vivia “a gozar, a menorizar e a humilhar a figura de Jesus Cristo”, afirmando que “não podemos deixar que outros venham para o nosso país dizer como devemos viver, que valores devemos ter, ou até gozar com as nossas personalidades máximas”.

Ou seja, em conjunto com as afirmações desta semana, estas últimas permitem afiançar, com elevado grau de certeza, que estamos diante daquilo a que os estudos literários têm consagrado como a evolução da psicologia do personagem. O mesmo André Ventura que, em 2019, apelava ao pronunciamento das “instituições cristãs e católicas” é o mesmo que hoje diz: o Patriarca que não meta o nariz onde não é chamado. O líder do Chega que indicava, há pouco mais de um mês, que não podíamos deixar que fossem outros a ditar como devemos viver, e “que valores devemos ter”, é o mesmo que gosta de indicar se o Papa e o Patriarca de Lisboa — assim como o que eles dizem — está, ou não, dentro da doutrina da Igreja.

S. Paulo escreveu aos Efésios que “há um só Senhor, uma só fé, um só batismo”. Tristemente, esqueceu-se de acrescentar: “Há, também, um só André Ventura”.