Porque é que há dezassete anos a nossa Constituição não é sujeita a nenhuma revisão? Será que não há nada de especialmente relevante na sociedade portuguesa que exija uma alteração constitucional? Ou será que não tem havido interesse dos principais partidos, PS e PSD, cujo voto favorável é essencial para a sua aprovação? É claramente por falta de interesse, e também porque aqueles que mais podem beneficiar duma revisão constitucional, as gerações futuras, não estão cá para votar muito menos para as solicitar.
O que é certo é que neste longo período só houve uma tentativa séria de revisão a de 2010, por iniciativa do PSD, abortada em 2011 pela dissolução da Assembleia da República. Como a natureza tem horror ao vazio, o Chega tratou de o preencher primeiro na XIV legislatura, tendo ido a jogo apenas a Iniciativa Liberal, e agora na XV com nova proposta, em que vários partidos anunciaram que terão apresentado propostas à última da hora. Como o prazo terminava esta sexta-feira e ontem não constava nenhuma proposta adicional no sítio da AR, só posso concluir que se o prazo foi cumprido, terá sido entre as seis da tarde e a meia-noite. A pressa é certamente má conselheira e foi público o descontentamento de militantes socialistas e sociais-democratas com a forma como, mais uma vez, os deputados, que são quem tem a exclusividade da iniciativa legislativa, terem sido marginalizados neste processo.
O Bloco de Esquerda argumenta que é inoportuno o timing e que é uma forma de desviar as atenções daquilo que deveria ser o essencial: o debate sobre o Orçamento do Estado e a situação social do país. Tem razão, mas não responde à questão essencial a colocar a BE, PS, PSD e restantes partidos: se a revisão constitucional é importante, porque é que em todos estes anos não houve oportunidade de a iniciar?
É importante rever a Constituição desde logo pelas gerações futuras que estão protegidas quanto aos direitos fundamentais, mas não estão em relação ao poder que as gerações presentes têm em relação às futuras de lhes imporem um fardo financeiro desmesurado (leia-se dívida), nem de lhes legarem um clima e uma utilização de recursos naturais injustos e inapropriados para uma vida saudável. Como argumento num ensaioque dediquei ao tema da justiça intergeracional no domínio da dívida pública, em Portugal confia-se no altruísmo descendente, isto é, que as gerações presentes consideram o bem estar das gerações futuras e tomam medidas para o proteger. Temos, porém, de ir mais além e de reforçar significativamente a justiça intergeracional através de normas constitucionais que incidam em particular sobre as dimensões financeira e climática.
Também é importante rever a Constituição se pensarmos nas gerações contemporâneas e nos problemas da sociedade portuguesa. Desde logo os jovens que estão mais próximos das gerações futuras, mas que não podem votar. Refiro-me aos maiores de 16 anos e menores de 18. Há bons argumentos para alargar o sufrágio a esta faixa etária. Estes jovens já são sujeitos de inúmeros direitos e deveres na legislação portuguesa (em sede de direito penal e direito civil), e há vários países que já o consagram. Adicionalmente ,o envelhecimento da população portuguesa leva a que o eleitor mediano seja cada vez mais velho, o que aliado ao maior abstencionismo jovem, resulta em que o votante mediano é ainda mais velho. Isto traduz-se numa ponderação e saliência, no processo político democrático, de tópicos mais considerados pelas gerações idosas do que as relevantes para as gerações novas. Uma forma de contrariar este efeito e de dar mais peso a problemáticas que afectam as gerações futuras é precisamente diminuir a idade de acesso ao voto. Aos que, usando por exemplo o caso da Escola António Arroio, possam argumentar acerca da pouca formação cívica e política de alguns jovens, questiono se consideram que se deve retirar o direito de voto a idosos que estejam a perder capacidades.
Outra das razões importantes para rever a Constituição, não é a castração química ou a prisão perpétua que o Chega propõe, mas tem a ver com a capacidade de lidarmos com a corrupção. A tentativa de criminalizar o enriquecimento ilícito tem esbarrado sucessivamente em acórdãos do Tribunal Constitucional com o argumento, decerto correto, sobre a presunção de inocência e inversão do ónus da prova. Usem a expressão que quiserem (ilícito ou injustificado), mas se PS e PSD não arranjam uma solução para ultrapassar os obstáculos que a Constituição, pelos vistos, coloca à criminalização do enriquecimento injustificado, nunca se conseguirá combater eficazmente a corrupção em Portugal.
Há muitas outras razões, maiores ou menores que suscitam a necessidade de rever a Constituição. O enquadramento constitucional de medidas de emergência em situações de Pandemia, a utilização de metadados, alterações nalguns conceitos utilizados (e.g. usar direitos humanos em vez de direitos do homem; etnia em vez de raça), etc.
Isto significa que, apesar de ter começado como começou, e de ser um pouco à pressa, esta revisão constitucional é uma oportunidade que não deve ser desperdiçada.
Há por fim, riscos dos quais destaco dois como mais relevantes. O primeiro, refere-se às regiões autónomas. Já se percebeu, pelos problemas existentes no passado, o entendimento que os deputados das regiões autónomas têm da autonomia regional quer em termos de legislação ordinária quer em temos constitucionais. Consideram que a Autonomia (com A maiúsculo) é um processo sempre inacabado e que tudo deve ser “regionalizado”. Já dei conta disto aqui no Observador a propósito da lei de separação dos mares dos Açores, da Madeira e do Continente. Aproveito para sinalizar, a quem tem o poder de fiscalizar a constitucionalidade das leis, que a proposta de lei da Assembleia Legislativa Regional dos Açores para isentar de IRS certo tipo de remunerações dos trabalhadores da administração regional e local, e que acabou de entrar (8-11-22) é, a meu ver, inconstitucional. Em 2005, Jorge Sampaio considerava que a revisão constitucional de 2004 “foi até onde se pode legitimamente ir sem pôr em causa a subsistência do Estado unitário e do valor constitucional”. Muitos eminentes constitucionalistas pensavam e pensam o mesmo. Infelizmente, as investidas dos deputados regionais autonomistas, diretas ou indiretas (através de legislação ordinária), para o deslaçar do Estado unitário continuaram. Foi o caso posterior do Estatuto dos Açores em 2008 com Cavaco Silva a argumentar, e bem, que uma lei ordinária restringia os poderes do Presidente. A ambição de “aprofundamento” da autonomia continuará, não tenhamos dúvidas. António Costa, já disse que não será objeto desta revisão constitucional. Fiquemos, pois, atentos a uma extraordinária que se poderá seguir.
O grande risco deste processo de revisão constitucional é que, no jogo de espelhos em que a política é profícua, não haja entendimentos sobre algumas normas relevantes, sobretudo entre PS e PSD, com contributos de outros partidos. Se tal acontecer, só estarão a alimentar os extremismos e radicalismos na sociedade portuguesa e a desproteger as gerações futuras.
Professor Catedrático do ISEG/Universidade Lisboa e Presidente do Institute of Public Policy – Lisbon