Depois do transvio do documento preparatório da decisão sobre o aborto do Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos, a esquerda americana entrou em histeria, ante a possível revogação do “irrevogável”. Uma histeria que entronca na histeria mais geral que começou em 2016, com a eleição de Donald Trump, que escalou com o Black Lives Matter, que acalmou com a eleição de Biden, mas que volta agora com o rascunho do texto que se propõe alterar – ou “reverter” – a regulação sobre o aborto.
Duas medidas
Note-se que, ao contrário do divulgado pela desinformação geral, e aqui decalcado pela generalidade dos nossos obedientes media, a decisão do Supremo Tribunal americano não proíbe o aborto. O que acontece é que, se a decisão for aprovada, a regulação do aborto passará a ser estadual e não federal, havendo também um mandatório dos prazos máximos para a terminação voluntária da gravidez. Pouco importa. O aborto é um assunto tabu, transversal, por diferentes razãos, às várias esquerdas, antigas e modernas. Talvez por isso as maniqueias “forças do progresso”, antigas e modernas, não se cansem de apresentar o facto como se de um escandaloso “retrocesso” se tratasse.
Estas “forças do progresso”, que congregam as várias esquerdas, dividem-se em duas espécies, uma mais ociosa e “civilizada”, outra mais activista e “rebelde”. A mais ociosa e civilizada é uma elite esclarecida, a burguesia liberalizante mais ou menos iluminada, chique e hedonista, tipo Macron, que se congratula com a extinção da pena de morte na legislação europeia enquanto exige que se consagre o “direito fundamental” de a impor aos nascituros. A mais activista e rebelde é a colorida turba que sai à rua e que mistura militantes do Black Lives Matter, adeptos de Greta Thunberg e velhas e velhos feministas, em manifestações de fúria, com cartazes assassinos, pedindo o extermínio dos adversários e acorrendo às casas dos juízes do Supremo Tribunal americano para os intimidar.
Todos nos lembramos do ataque ao Capitólio por uma multidão de deploráveis, incentivados pelo populista Trump. Desta vez, na marcha sobre o Supremo Tribunal, parece que não eram deploráveis que marchavam, que não era sequer uma turba: era uma multidão de “esclarecidos arautos do progresso e do direito à privacidade e ao corpo”, alheia a quaisquer incentivos, oficiais ou outros. O senador Ted Cruz, do Texas, que ainda tentou chamar a atenção para o possível paralelo, criticando o silêncio cúmplice do presidente Biden em relação à crescente anti-democraticidade dos “democratas”, foi rapidamente descartado: tratava-se, evidentemente, de uma caluniosa falácia conservadora, já que qualquer semelhança entre os deploráveis de extrema-direita do ataque ao Capitólio e os activistas democráticos do ataque ao Supremo Tribunal era pura coincidência.
Nada que não seja já tradição numa Esquerda que, continuando a assumir-se como detentora da verdade e da modernidade, aprendeu com os nazis e com os comunistas que tem de começar por arvorar-se em raça superior ou em vanguarda esclarecida e por desumanizar os adversários ideológicos (os “deploráveis”, os “populistas”, os “retrógrados” os “ignorantes” os “inimigos da Humanidade”) para os poder depois aniquilar em boa consciência em nome da Justiça, da História e do Progresso. Quem conheceu e viveu o movimento associativo na Lisboa e na Coimbra dos anos sessenta sabe que era já esse o entendimento que a esquerda académica tinha das liberdades e da Liberdade nas Faculdades, aplicando nos espaços que dominava as mesmas regras e a mesma repressão de que acusava a Censura e a PIDE.
Estes dois pesos e estas duas medidas continuam a ser aplicados pelos grandes media à política em geral e à política americana em particular: se Hunter Biden, o filho do presidente norte-americano que andou em negócios pela Ucrânia e pela China, com o pai Vice-Presidente a cobri-lo, fosse filho de Donald Trump, ou se fosse Trump o protagonista das inúmeras gafes, “senior moments” e índices de impopularidade de Biden, as escandalosas ocorrências teriam mais cobertura do que a Covid 19 ou do que a guerra na Ucrânia. Do mesmo modo, se as evidências científicas comprovassem que não havia vida antes do nascimento, a descoberta teria mais antena do que Aquecimento Global. Assim não sendo, por cá e pelo mundo, é o silêncio.
Matéria de facto
Em Setembro de 2021, George Weigel publicou em First Things um artigo intitulado “Catholic Beliefs and the Abortion Debate”, em que estabelecia a diferença entre acreditar nos mistérios da Religião e saber que a vida humana começava na concepção. Para Weigel, os católicos deviam acreditar que a vida humana começava na concepção, não porque preservar a vida desde o começo fosse – como também o era – um imperativo religioso e moral, mas porque assim o demonstrava a Ciência. Tal como a Terra era redonda, Vénus era o segundo planeta do Sistema Solar e o sangue circulava no corpo, também o facto de a vida humana começar com um embrião com “um carácter genético identitário”, constituindo “um exemplar único da espécie Homo Sapiens no primeiro grau do seu desenvolvimento natural”, não era matéria de fé, era matéria de facto, de facto científico. Porém, Weigel lembrava que os movimentos pró-aborto continuavam a tentar ignorar ou a dissimular esse facto, transformando-o numa crença religiosa – logo, sectária; logo, não-científica; logo, produto de uma visão reaccionária, medieval, passadista, a cheirar “a mofo e a sacristia”.
Ironicamente, são os factos e o mofo de uma visão presa a um velho paradigma, uma visão passadista sobre uma vida outrora invisível e, logo, mais facilmente descartável, que agora se abafam. E o que agora se esconde, à sombra de uma velha luta feminista, é o profundo machismo, em infeliz associação com o moderno hedonismo, que continua a determinar a promoção da solução rápida do aborto em prejuízo de mais trabalhosas e onerosas políticas sociais e de saúde numa ética de co-responsabilização. Assim, exalta-se e penaliza-se exclusivamente a mulher pelo começo ou pelo fim de uma vida – como se uma coisa ou outra fossem da sua inteira e exclusiva responsabilidade e não tivessem implicações físicas, psicológicas e económicas, nem houvesse co-responsabilidades parentais e sociais.
Velhas e novas utopias
A Utopia, no sentido ambíguo que lhe imprimiu o próprio Morus de sociedade perfeita localizada “em lugar nenhum”, sempre existiu no pensamento ocidental. E tem uma raiz bíblica no paraíso terrestre e nas palavras do Sermão da Montanha; palavras que, laicizadas e transportadas para contextos menos metafóricos e virtuosos e mais voluntariosos continuam a trazer o selo e o encanto da virtude a muitos pregadores revolucionários.
Esquece-se, no entanto, que uma das características desse mesmo pensamento do Ocidente – Thomas Morus é o santo padroeiro dos políticos – é procurar o ideal mas reconhecer que, no mundo do possível, ficamos e ficaremos sempre aquém desse ideal. E tanto mais irremediavelmente aquém quanto mais nos esquecermos da realidade da natureza humana, ou de que, quase sempre, “Qui veut faire l’ange, fait la bête”, como dizia Pascal.
O problema das angélicas utopias – e a mais completa e real foi o marxismo-leninismo – é que, seguindo Marx, os seus criadores ou executores revolucionários, os filósofos operacionais que quiseram mudar a natureza das coisas, não recuaram perante nada para cumprir voluntariosamente os seus projectos de construção do melhor dos mundos: proibindo, perseguindo, prendendo, fuzilando, enforcando, massacrando, durante todo o século XX, da Rússia ao Cambodja, da China à Etiópia, dezenas de milhões de homens e mulheres que viram como obstáculos. E para se legitimarem e descartarem Deus, a realidade e o imponderável, fizeram equivaler o seu sonho à Verdade Última, o seu método à Justiça Suprema e a sociedade traçada a régua e esquadro e sangue ao Paraíso Terrestre.
Entretanto, as coisas mudaram, e o que era o bem social absoluto, a sociedade sem senhores nem escravos e sem ricos nem pobres, é agora o bem individual absoluto, o indivíduo sem limitações físicas, esculpido à imagem e semelhança da sua própria vontade, o Homo Deus de Harari, senhor da vida e da morte. Fernando Pessoa, na pele de Bernardo Soares, anteviu bem o presente dessossego quando sugeriu que do “moral” se passaria ao “estético”, e do “social” ao “individual.”
Num tempo fértil em sonhos destes, pródigos em paraísos na terra, agora “estéticos e individuais” mas igualmente totalitários, poucos se lembrarão, apesar da História e apesar daquilo a que começamos a assistir, que este tipo de pensamento utópico quase sempre degenera em distopia.
A expropriação da terra é agora a expropriação do corpo, que não deve pertencer já ao Criador, que não deve já sujeitar-se à tirania do sexo biológico, nem relacionar-se com que quer que seja de sagrado ou até de natural, para que possa ser retraçado, mutilado, eutanasiado, ou, se a Ciência e a conta bancária o permitirem, eternizado. Porém, tal como nas sociedades que ensaiaram o “socialismo real”, o que poderia parecer liberdade individual, elevação das vítimas da fome de dignidade e respeito, instauração das mais amplas liberdades, esconde muitos calvários e assume rapidamente outros contornos. Sem que ninguém obrigue ninguém, todos somos compulsivamente chamados a subsidiar os novos projectos utópicos, a trabalhar para a nova utopia “estética e individual”, a louvar os seus métodos e a hastear as suas bandeiras, sob pena de sermos diagnosticados como seres patalógicos e confinados ao gueto dos “fóbicos”, os antigos inimigos do povo.
Porque é que a reversão de Roe v. Wade, ou a remissão de uma decisão que se queria global para o domínio federal, causa tanta histeria, tanto choque? Talvez porque, ao contrário do que acontece com outras causas fracturantes, como as sexuais ou de género, na causa do aborto confluam dois paradigmas marxistas, duas utopias de esquerda, uma velha e outra nova, uma marxista, outra neo-marxista. Na causa do aborto, o feminismo histórico e a memória de muitas lutas em prol das mulheres vítimas do uso, do abuso e do abandono masculino ou impossibilitadas de sair do círculo vicioso nascimento/procriação/morte, num tempo anterior à generalização da contracepção e ao conhecimento da vida intra-uterina, conflui com o moderno hedonismo da liberdade de acção sobre o próprio corpo e do pretenso controlo sobre a vida e sobre a morte. É, assim, compreensível que, à esquerda, seja generalizado o choque, também pelo que a ideia de “revogação” de “irrevogáveis conquistas” pode representar para o profetismo progressivo das esquerdas, habituadas a uma marcha linear da História.
A efectivar-se, a decisão do Supremo Tribunal norte-americano será, para muitos, uma conquista da defesa da vida, da vida dos mais frágeis e da nossa vida como sociedade e comunidade humana, mas, para outros, não passará de um “recuo civilizacional”, de um retrocesso no sentido da História, de um grave acidente na marcha para o melhor dos mundos.
Para já, os opositores prometem não ter respeito por nada: nem pela de divisão dos poderes, nem pelo Estado de Direito, nem pela verdade dos factos. E como senhores da verdade, vão inquisitorialmente expurgar o mal, com os utópicos olhos postos no novo ideal.
Preparemo-nos para o pior.