Rui Costa foi um dos maiores ídolos da história recente do Sport Lisboa e Benfica. Ainda que tenha feito apenas cinco temporadas envergando o manto sagrado e conquistado apenas um campeonato e uma Taça, a forma como elevava o futebol enquanto modalidade mundial em conjunto com a genuidade que lhe era atribuída enquanto filho do bairro que chegara à Luz em criança conferiam-lhe um estatuto de quase Dom Sebastião de um clube que vivera, após a sua saída, os malogrados anos do “Vietname” período ao qual nenhum Benfiquista quer regressar. Acabaria por regressar completando a trilogia do miúdo que sai das ruas da Damaia para crescer no Estádio da Luz, encanta o mundo com uma classe ímpar e até chora quando marca ao clube de coração num amigável, regressando para terminar a carreira no meio dos seus.

Penduradas as botas, Rui Costa assume a pasta de diretor desportivo do clube, começando por fazer todos os esforços para trazer um digno herdeiro da sua camisola 10 do Benfica, Pablo Aimar, que viria a encantar qualquer ser humano que tivesse o privilégio de respirar o ar dos estádios por onde o argentino pintava obras primas nos relvados. Esta prosa não é sobre Aimar, sob pena de se tornar mais romântica que realista, mas a verdade é que, no mesmo Verão em que deixara de oferecer a sua magia ao futebol de campo, Rui Costa ameaçava ser igualmente diferenciado enquanto membro de uma estrutura que pudesse devolver ao Benfica o seu lugar hegemónico natural no panorama desportivo nacional.

Com o passar dos anos, a visibilidade de Rui Costa enquanto activo na estrutura do clube era cada vez mais discreta. Inversamente proporcional eram, no entanto, as suspeitas de que o Benfica pudesse estar cada vez mais envolvido em processos que manchassem a dignidade do clube de forma irreversível, comandado por um presidente que assumia uma crescente postura de rei-sol que reclamava a refundação do Benfica , contrastando com a tradição democrática que sempre pautou a história do clube. As comissões de origem e proveito dúbio sucediam-se, assim como a forma opaca como as contratações do clube eram trabalhadas. Não haverá melhor exemplo disso que a infame época 2017/18 onde, no seguimento de um desinvestimento brutal, o Benfica abdica da possibilidade histórica de alcançar um pentacampeonato. Sabe-se, hoje, que esse desinvestimento surge como consequência do que o Benfica se tornara: um autêntico porto seguro para proveito pessoal de uma mão cheia de intérpretes que não tinham o mínimo interesse genuíno em ver o clube ganhar desportivamente. De vencedor de títulos o Benfica passara a vencedor de capas de jornais por vendas estratosféricas de jogadores ano após ano. Em 2020, o Vieirismo é ameaçado de forma clara por uma candidatura forte e credível à presidência do clube encabeçada por João Noronha Lopes. Um acto eleitoral profundamente manchado na sua preparação e execução onde a ausência de debates ou desprezo total por parte do canal do clube às eleições acabam por ser meros detalhes quando comparado com o que se passou no dia da eleição: os votos físicos depositados em urna simplesmente não foram contados. Total ausência de escrutínio perante uma Mesa de Assembleia Geral que parecia plenamente satisfeita com tal circunstância. Cada um terá a sua ideia sobre quem ganhou aquela eleição, até porque por virtude dos votos não terem sido contados não nos podemos dignar a mais que suposições. Mas a frase de Vieira numa das suas ações de campanha em que afirma que “não podem ser umas eleições quaisquer a definir o meu sucessor” podem ajudar a formar uma opinião honesta.

Rui Costa foi conivente com isto. Como foi conivente com o que se tinha passado em 2017/18 em que se desinveste na equipa por forma a saldar dívida não vencida do Benfica para proteger a relação pessoal de Vieira com os seus credores. Como foi conivente com as dezenas de contratos analisados pela recente divulgada auditoria onde fica a nu a opacidade nas transferências de jogadores bem como comissões de 980% do valor de remuneração bruta do jogador definida nesse contrato (guidelines da FIFA apontam para valores de 3%). Como foi conivente com tudo o que leva ao processo Saco Azul com base em suspeitas de alegada utilização fraudulenta de verbas ligadas ao Benfica para pagamento a terceiros, no valor total de cerca de 2,2 milhões de euros faturados à Benfica SAD e Benfica Estádio. Como foi conivente com o constante arrastar para a lama do nome do clube que humildemente tinha sido fundado nas traseiras de uma farmácia em Belém a vinte e oito de fevereiro de mil novecentos e quatro. Há, no entanto, uma outra possibilidade, que é a de Rui Costa simplesmente não ter percebido que nada disto se estava a passar. Qualquer uma das duas, como disse Ricardo Araújo Pereira, deveriam ser motivo para que não servisse como presidente da maior instituição desportiva nacional.

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Mas o futebol é um meio irracional e a aura descrita no primeiro parágrafo não estava gasta. Após a detenção de Luís Filipe Vieira na sequência da operação Cartão Vermelho, Rui Costa apresenta-se como presidente do Sport Lisboa e Benfica num discurso pleno de pretenso simbolismo no relvado da Luz, apelando à união em torno do clube num momento incontestavelmente complexo. Eventualmente, é cumprida a promessa de agendamento de Assembleia Geral Extraordinária como requerido pelos sócios nos termos estatutários, que, entre outros pontos, levaria a que as então convocadas eleições para os Orgãos Sociais do clube viessem a decorrer por voto físico. Nessa eleição, que viria a ganhar diante de Francisco Benitez, Rui Costa tinha uma oportunidade divina, sem que propriamente tivesse feito muito para a merecer: podia alegar cortar com os males do Vierismo, montar uma equipa renovada (não na totalidade pois isso implicaria a sua própria saída) e proclamar-se como líder de transição para um Benfica desapegado dos que o usam para proveito próprio, apelando a um implícito perdão completo por parte dos sócios mais atentos que não esquecem a sua (in)ação em todos os momentos que lesaram o clube.

Desperdiçou a oportunidade e não o fez.

E ao não o fazer, mantendo uma grande parte da estrutura que trabalhara com Vieira anos a fio como é exemplo o seu chefe de gabinete, Nuno Costa, Rui Costa deixava latentes as dúvidas em torno da aclamada renovação que estaria a trazer ao clube. Dúvidas essas que vão sendo atenuadas (mas não ignoradas) em momentos em que a bola até entra como na época de 2022/23 onde o Benfica alcança um justíssimo 38.º título de campeão nacional mas que se provam completamente fundamentadas com o regresso a processos do passado quando os resultados desportivos não são favoráveis como na passada época 2023/24. Não é que a bola do Neres no Bessa ter entrado ou não esteja relacionado com um processo de revisão estatutária onde o trabalho da comissão independente criada para o efeito anos antes é convenientemente ignorado. Nem é que as sucessivas derrotas contra o Sporting na Taça e Campeonato estejam relacionadas com a recente demissão de Luís Mendes da Administração da SAD por suposto desentendimento quanto ao modelo de gestão de gastos do clube. Mas o desporto, no geral, vive do momento. E o momento chegou na recente Assembleia Geral de 15 de Junho.

As quase 80 intervenções de sócios de várias idades e pontos do país abordavam de forma consecutiva o que é óbvio para quase todos: o Benfica não está a ser dignificado pela actual direção e Rui Costa, em vez de assumir o corte com o passado, preferiu ir passando atestados de cumplicidade aos sócios levando a um ponto de não retorno. Os sócios presentes na AG disseram de forma clara que estão fartos deste benfica que é cada vez menos Benfica. Tal, ficou comprovado com os momentos finais em que Rui Costa, no seguimento de ordem do Presidente de Mesa de Assembleia Geral, se preparava para abandonar a reunião sem os habituais esclarecimentos aos sócios que lhe foram deixando questões. E foi aí, ao voltar num registo mais impetuoso que a calma que o caracterizava, que se viu um líder completamente desnorteado sem qualquer capacidade de percepção daquilo que era, e é, a vontade dos presentes. Ou talvez Rui Costa até soubesse mas estivesse a ser aconselhado a agir de forma contrária. Qualquer uma é contraditória com o que tem de ser a postura do presidente do Sport Lisboa e Benfica que, acima de tudo, tem de ter bem presente para si mesmo que os sócios são a sua entidade patronal e que, particularmente em Assembleia Geral, o seu trabalho é prestar-lhes esclarecimentos.

O miúdo de bairro que meritoriamente construiu carreira como um dos melhores futebolistas do mundo da sua geração, símbolo do benfiquismo e que voltara ao clube do coração para terminar a carreira acaba por, enquanto dirigente, seguir um percurso inversamente proporcional à sua carreira desportiva e é hoje um líder em declínio incapaz de dar ao clube a mudança porque este tanto espera há demasiados anos. O Benfica precisa de uma liderança forte, de acordo com os valores fundamentais do clube. Que trabalhe para alimentar o clube de sucesso desportivo e que capitalize todo o potencial enquanto maior instituição portuguesa. Que viva para o Benfica e não do Benfica.