A ordem internacional pós-Guerra Fria está a sofrer a mais forte contestação desde que foi moldada pela primazia do poder dos EUA no início da década de 1990. Miseravelmente, a ilusão de um mundo governado desde os ideais e valores ocidentais desvanece com o retorno da competição entre as grandes potências. O celebrado “fim da história” não passou de manipulação intelectual visando conquistar almas inocentes para o projeto inviável de ordem internacional formulada pelos neoconservadores americanos. Como potência revisionista a exigir uma redistribuição do poder global condizente com pressupostos geopolíticos, a Rússia marcha firme para alcançar seus objetivos estratégicos. O que no passado parecia sonho de um tiranete deslocado do seu tempo hoje tornou-se realidade.

Quando ascendeu ao poder em 2000, Vladimir Putin definiu como objetivo central restaurar a posição de grande potência da Rússia. Era necessário rever o papel de ator internacional menor que os EUA reservaram ao país. Para os formuladores em Washington, se o ressurgimento da Rússia como um centro do poder mundial não era previsível, certamente era indesejável. O triunfalismo com base numa suposta superioridade moral fazia com que a humildade que se espera do vencedor fosse característica escassa do comportamento dos guardiães da ordem internacional liberal do século XXI.

Inebriados pelas possibilidades quase ilimitadas que a condição de superpotência global lhes conferia, os americanos passaram a tratar o mundo como prolongamento de sua ordem política doméstica. Entretanto, os EUA não perceberam as transformações por que passava o sistema de Estados. E pior, mesmo diante da invasão da Ucrânia, tudo indica que ainda não entenderam o ambiente hobbesiano que domina a arena internacional. Ou entenderam perfeitamente e resolveram usar os ucranianos como bucha de canhão.

Seja como for, conhecer a história pode não fazer ganhar guerras, mas muito provavelmente ajuda a evitá-las. Durante vários séculos, a Rússia atuou como elemento-chave na definição do quadro de segurança sob o qual os europeus desenvolveram as suas relações exteriores. Foi assim quando a Rússia incorporou parte da Polónia no século XVIII, quando derrotou o exército invasor de Napoleão em 1812, e não foi diferente após a Segunda Guerra Mundial. Decisivo para a vitória dos aliados sobre as forças de Hitler, o Exército Vermelho ocupou o Leste Europeu fazendo descer sobre o continente o que Winston Churchill chamou de “cortina de ferro”.

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Para completar o quadro da sua relevância global, some-se o facto de a Rússia albergar o maior arsenal nuclear do mundo. Além disso, ostenta o posto de país mais extenso do planeta, cobrindo nada menos do que 11 fusos horários, do Báltico ao Pacífico. É um dos maiores exportadores globais de commodities, incluindo petróleo, gás, milho e trigo – os EUA e a Europa encabeçam a lista dos principais compradores. Na dimensão artística, embora os bolcheviques se tenham esforçado para o destruir, o legado russo na música clássica, na literatura e nas artes plásticas integra parte significativa do repertório cultural da humanidade.

Entretanto, parece que na mente dos vencedores da Guerra Fria, tudo isso deveria ser enterrado junto com os escombros do império soviético. Zelosamente imaginaram que os regimes autoritários que garantiram à Rússia longos períodos de glórias desapareceriam para dar lugar à democracia liberal redentora. O país seria mais um entre os iguais numa ordem internacional liderada pelos EUA e seus aliados. É certo, de ingenuidade e arrogância está o inferno cheio.

O momento de fraqueza estratégica foi superado. A Rússia ressurgiu, e não foi sob o manto de um Ocidente frívolo, cujos líderes empenham enorme energia na discussão de temáticas do tipo identidade de géneros e banheiros públicos (contém ironia). O seu regresso como grande potência deu-se sob a forma da tradição autocrática russa nos últimos séculos. Sem precisar de prestar contas à população sobre os motivos e custos da guerra, o regime criado por Putin e sua camarilha notabiliza-se por concentrar poder nas mãos do presidente. Porém, isso não é suficiente para resolver um problema que persegue a Rússia desde tempos imemoriais, a defesa do seu território.

O incontornável dilema de segurança move a Rússia a buscar permanentemente garantias contra movimentos de adversários em direção a suas fronteiras. O país é refém da sua geografia que não favorece estratégias de defesa limitadas ao próprio território. Durante a Guerra Fria, os países do pacto de Varsóvia e as antigas repúblicas soviéticas serviam de amortecer contra as pretensões estrangeiras. Como toda grande potência, a Rússia está disposta a sacrificar a soberania de outros Estados para garantir a sua segurança.

A invasão da Ucrânia para impedir sua integração à NATO e à União Europeia é uma forma de conter a expansão das estruturas ocidentais na vizinhança da Rússia. Mas a agressão de Putin deve ser entendida também como um teste para a disposição do Ocidente de manter o quadro de segurança unilateralmente moldado no seguimento do fim da ordem bipolar. A expansão da NATO nunca foi aceita pela elite russa. A resignação apenas foi administrada enquanto Moscou reunia as condições ideais para começar a reverter aquilo que considera uma anomalia que sobreviveu ao fim Guerra Fria.

Putin aposta na decadência gradual do Ocidente para mover suas peças. O ex-agente do KGB sente o cheiro de fraqueza no ar. A retirada atabalhoada do Afeganistão promovida por Joe Biden em 2021 sinalizou as fissuras na relação entre os EUA e seus aliados. Mais do que despreparado, o Ocidente demonstra pouca disposição para a guerra. Entrar num conflito envolvendo a maior potência nuclear do planeta é uma aposta que poucos pagariam para ver.

Enquanto isso, a Rússia demonstra possuir total controlo sobre as suas decisões. O risco parece calculado nas frentes em que decide testar as suas capacidades de influenciar o curso dos acontecimentos. A Síria foi pintada como um possível atoleiro aos moldes do Afeganistão na década de 1980. Mas, graças a Putin, Bashar Al-Assad resistiu à tentativa de tomada do poder pelo Daesh. Da mesma forma, sacudidos por movimentos oposicionistas, os regimes autoritários da Bielorrússia e do Cazaquistão foram salvos pelas forças russas.

A iminente queda de Kiev servirá para solidificar a influência de Moscovo sobre o seu Estrangeiro Próximo. A Ucrânia não foi a primeira e pode não ser a última intervenção da Rússia na sua vizinhança. Por isso, definitivamente, os EUA e os seus aliados europeus estão diante de um ponto de inflexão: ter uma ordem de segurança europeia moldada pela assertividade da Rússia. Sem opositores dispostos e capazes de criar constrangimentos para as suas ambições imperiais, tudo indica, Putin fará novas vítimas. Uma passada rápida sobre a sua visão das relações internacionais mostra que o seu apetite imperialista está longe de ser saciado.

Putin percebe o contexto internacional dominado por um número limitado de potências em condições iguais de poder. As principais questões mundiais devem ser decididas por elas de forma concertada. Para o presidente russo, a soberania é um direito que assiste apenas a Estados que possuem os meios para defendê-la. Em matéria de segurança, o exemplo vem de Catarina, a Grande. De acordo com a czarina, a única maneira de proteger as fronteiras da Rússia era expandi-las continuamente.

A visão de mundo de Putin contraria frontalmente a abordagem ocidental, que ancora as relações internacionais em acordos e tratados. Mas até que ponto os EUA e seus aliados estão dispostos a defender aquilo que acostumaram a chamar de fundamentos do mundo livre? Embora o objetivo seja consolidar a Rússia como potência regional, diferentemente dos soviéticos que tinham ambições globais, em política externa os interesses são moldados pelas capacidades próprias, mas também pelas oportunidades que o sistema de Estados oferece. Para autocratas como Putin, o céu parece o limite.