Não sei porquê, mesmo. Nenhuma das costelas que aqui estão dentro é francesa. Família cá, tão pouco. Mas os poros fecham-se todos. Arrepia e não para de arrepiar. Parece que a temperatura baixa uns 15 graus quando tantas gargantas se abrem para cantar. “Allons enfants de la Patrie!”. É mais do que música para os ouvidos, é para a pele. Toda a gente se levanta, jornalistas e tudo, para a Marselhesa. Nem se escuta a música, ouve-se a forma como o hino é entoado. O Stade de France leva umas 81 mil pessoas e, tirando os amarelos que vejo na bancada, devem estar umas 70 mil a cantar. Não, a berrar.
E isto arrepia, mesmo muito. Não é o hino português, nem aqui ao lado vejo alguém que venha do mesmo sítio que eu. Não é a seleção que torço em silêncio por ser jornalista. Nem é o público que a vai apoiar em massa, quase de certeza. Não é nada disto, mas é o primeiro jogo do Campeonato da Europa e nunca tinha estado aqui. Também não é por ser em França. É por estar no estádio que está à pinha com gente atrás da seleção anfitriã, que canta a dobrar ou a triplicar, talvez por saber que em 1984 e 1998 a coisa resultou. A França organizou e ganhou.
Agora sinto que quem ganha sou eu, só pode. Porque os arrepios voltam quando, lá em baixo, o Griezmann remata ao poste e o estádio treme com os bruás. Reaparecem sempre que o Giroud quase recebe um passe ou chega às bolas que insistem passar-lhe para o espaço em vez de para o pé. Voltam ainda mais assim que, ao quarto de hora, milhares de franceses decidem voltar a entoar o hino. Vibram com tudo e tudo vibra com a forma berrante como reagem. É barulho bom, ruído saudável, soa quase a música.
Música da boa para quem, há uns (poucos) anos via tudo o que era bola com os amigos. Mesmo quando deixei de ver, quem dera aos estádios portugueses arcarem com tanta gente. Já o conseguiram, mas quando quiseram ser modernos tudo mudou. O barulho não é o mesmo. A emoção não tem nada a ver.
Até esteve quase para nem existir — sai mais um arrepio, que o estádio acabou de reagir ao golo de Giroud como a criança que berra só por tropeçar e cair no chão. Não tinha pedido acreditação para o jogo de abertura. Estúpido. Vim cedo para o Stade de France, soube que há uma lista de espera para casos como o meu e, a hora e meia do jogo lá estou. A criança sou eu, à beira de um balcão, à espera que uma senhora da UEFA diga o meu nome com sotaque francês, que me confirme que há um espaço para mim na bancada de imprensa. E estes franceses insistem, estão a cantar o hino outra vez.
É que tudo isto é um acumular de coisas boas. Coisas que, quando antes do jogo paro um pouco e olho para o estádio, me fazem pensar: que sorte. Ainda os berros, a Marselhesa, os festejos, o barulho do estádio não começaram, e já me cruzo nos corredores com o Kristian Karembeu, o francês de tranças que ganhou um Mundial aqui antes de vencer um Europeu depois. Passo também pelo Michael Laudrup, o senhor Dinamarca que jogava tanto, mas tanto, pelo Barça e pelo Real. E ainda vejo Bixente Lizarazu duas filas abaixo da minha, no estádio, com auriculares gigantes na cabeça, a trabalhar. Claro que vou ver se os apanho a seguir.
Quem também é craque é o Payet, que lá em baixo finta, dobra o corpo, ginga e baila entre romenos. É um ciclo vicioso: ele puxa pelos adeptos, quem torce reage, os gritos juntam-se e os poros da pele fecham-se. Não sei se são apenas os meus. Sempre ouvi dizer que isto é pele de galinha, mas nunca alguém disse como uma galinha se sente. Talvez seja isto e os franceses chamam-lhe poulet.
P.S. E o Payet ainda inventa um golaço, rebenta com as gargantas de toda a gente no estádio, cria um barulho que dói nos ouvidos e ainda sai do campo a chorar, quando é substituído. Não tenho mais palavras.