“Quando a fúlgida Aurora de olhos resplandecentes dirigiu o olhar para as íngremes escarpas do Pélion, e o mar, agitado pelo vento, batia nos promontórios serenos”, Tífis, o timoneiro, gritou pelos companheiros: era hora de zarpar. O lançamento de um navio é um momento irrepetível: feito para navegar, tocando pela água salgada, soltas as amarras, nunca mais será virgem. O Argo estava prestes a tornar-se pleno, completo, e os rapazes comemoravam a passagem da terra ao mar. Uns derramavam na água vinho puríssimo, outros entoavam cantos ao som da lira de Orfeu: “Um ramo de frésias na ombreira, meu amor, para o perfume te guiar no regresso.”

Por fim, o Argo partiu.

Os Argonautas olhavam para além, para portos jamais vistos, ébrios de desejo pelo desconhecido. Apenas Jasão, o comandante, se consentiu o luxo da fragilidade: a Antiguidade era um tempo em que chorar era considerado um gesto humano – heroico, na verdade – não uma fraqueza. O medo apoderou-se dele, juntamente com a saudade. Voltaria algum dia a casa?

Dizem que as lágrimas costumam ser a melhor maneira de nos prepararmos para algo novo, porque, turvando os olhos, suspendem por instantes a visão daquilo que para sempre perderemos. Os olhos deixam de ver o abandono, libertam-se do perigo da saudade, da tentação da renúncia. Quem dera que assim fosse…

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O desejo de mudar, a força de escolher, a coragem de amar, a honra de ser fiel, sobretudo a si mesmo, a ousadia de falar de si – eis os elementos que permitem aos homens de todos os tempos viver em plenitude e dignidade. Sentimos esse arrepio a cada dia, todos os dias, até ao último. Deveríamos celebrá-lo, porque é a única prova irrefutável de estarmos vivos. E de estarmos no mundo para fazer algo grande, cuja medida sejamos apenas nós.

É aquele estremecimento que sentimos desde a infância, desde aquele primeiro dia de aulas. Olhando para além, chegamos a sentir uma ternura infinita por aquela nossa imagem tremida, bem penteadinhos, ali, à porta, atentos à infinidade de ânsias: desejo de descobrir qual a nossa carteira, curiosidade em conhecer os nossos colegas, medo do professor, liberdade de ficar, por algumas horas, longe do olhar atento dos pais, medo do julgamento dos outros, esperança de encontrar um amigo.

Estremecimento que reaparece ao encontrarmo-nos lá fora, no mundo, sozinhos pela primeira vez, e que continuará a repetir-se outras imprevisíveis primeiras vezes: quando a surpresa de uma paixão, com a sua luz íngreme, nos ilumina por dentro e permite ver tudo claro e então sabemos. Sabemos a embriaguez da tarefa que nos foi confiada e que apenas nós poderemos realizar: conhecermo-nos e oferecermo-nos aos outros.

Quanto mais avançamos, porém, mais complicado tudo se torna, os relacionamentos ficam mais difíceis, maiores as responsabilidades, mais avassaladores os desejos, mais inusitadas as paixões; já não somos como todos os que nos rodeiam, escolhemo-nos e descobrimo-nos estranhos, cada um à sua maneira. E então, por medo, repelimos aquele estremecimento que nos questiona, todos os dias, como se fosse o primeiro. Porque é. Sempre.

Preferimos não ouvir, fingir que esquecemos. “Já não és novo”, dizemo-nos enquanto encolhemos os ombros. E depois, a certa altura, passamos a ignorar esse calafrio vital que nos sacode e confundimo-lo com uma corrente de ar que perturba o torpor dos nossos hábitos. E procuramos álibis e abrigos. Os nossos passos tornam-se previsíveis, pesados, como na neve do inverno, até que deixamos de caminhar. Preferimos reagir e não percebemos que estamos a recuar.

Começamos a reclamar das segundas-feiras da vida, dos imprevistos, das contínuas primeiras vezes; deixamos de ser curiosos, não queremos nada de novo; queremos que todos os dias sejam domingo, para nos enterrarmos na modorra do nosso pequeno sofá e das nossas pequeninas seguranças. Consumidos pelo esforço inútil de rechaçar esse instinto tão humano de partir, estranhamos, ao anoitecer, estarmos cada vez mais cansados, mais vazios. Se ao menos não esquecêssemos que, noutros tempos, fomos argonautas movidos pela urgência, pela necessidade de tentar e, depois apenas, de viver.

“Incompleto” é o adjetivo que define os viajantes sem rumo – o que perdeu o controlo da nau; aquele a quem uma tempestade danificou o casco; o que encalhou num baixio não assinalado nas cartas; o que arribou a um outro lugar e não ao porto definido de antemão, um porto desconhecido onde será sempre um estranho para si mesmo.

«ἰοίην» – “que eu possa ir além” – é a única palavra de um poema inteiro que se perdeu (Safo, fragmento 182) e que assim, sozinha, sem contexto nem contornos, toma sobre si a carga de todas as outras palavras para sempre perdidas. Foi sempre interpretada como uma expressão de ânsia interior, de esperança iminente, de desejo de renascer, de superar uma pedra: que eu possa ir além de mim mesmo; para além de latitudes e longitudes pré-estabelecidas; para além dos limites da razão que tantas vezes sufoca; para além do tempo que por vezes repara e outras desgasta; para além do que não chegou a ser; para além do que não me pertence; para além dos ventos contrários e de correntes adversas.

“Mar sereno”, expressão que, à excepção de marinheiros, tantos repetem. Também nós a repetimos, à saciedade. Confundimos navios com barquitos a remos, vivendo como zelosos funcionários do conhecido, ida e volta ao consabido, turistas em trânsito de margem para margem. E, num determinado momento, de repente, diante de nós, o ignoto.

“Ignoto”, isto é, nunca visto, não observado, não previamente conhecido. O oposto do que estava escrito no umbral de Delfos: γνῶϑι σαυτόν (gnōthi sautón). O aviso para todos quantos chegavam de todos os cantos da Grécia para consultarem o oráculo: antes de pedir contas ao outro sobre o futuro, descobre a única coisa que já sabes e que ninguém pode dizer por ti: “Conhece-te a ti mesmo”.

Dois mil anos depois, talvez te recordes de Matrix: na cozinha do Oráculo aparece reproduzida a mesma expressão, mas em latim: Temet nosce. Está ali para lembrar ao eleito, Neo, que o autoconhecimento é o único caminho para a mudança. Confuso, Neo pergunta como poderá ele saber se é o escolhido e se é chegada a hora de partir. A resposta do Oráculo cabe inteiramente num sorriso: ninguém precisa de nos dizer quando estamos apaixonados, pois não? Vemos tudo claro. Sabemos. Um perfume de frésias inunda o ar. Estamos em casa. A tua viagem há muito que começou.