O caso é grave — confesso, e coloca em risco a minha vida conjugal. Ele é arritmias, insónias, suores frios e, quase que juro, até acordei a murmurar o nome dela. Não fosse o cônjuge ter sono pesado e, a esta hora, bem podia estar nas urgências, confiando que o INEM tivesse chegado a tempo. Saí de fininho e no banho até me questionei: “Será amor isto que sinto?”. O que é estranho, já que, à excepção daquelas covinhas no rosto, não acho especial piada à senhora. Até pensei que fosse alguma reminiscência de um namoro de juventude que, com ela partilhava as graças e a pele trigueira. Só a dose de cafeína ao pequeno almoço, me colocou o cérebro funcional. (Atenção que o funcional é segundo os meus critérios e não os vossos!).

A princesa de África – e aqui abro parêntesis porque não é uma princesa de um reino. Já que goza do título, então que seja em grande, e vai de perfilhar todo um continente! – tem(-me) entrado [e julgo que a vós também], dia e noite, pela casa. Invade-me os olhos, esbulha-me os ouvidos e até me tira o sono. Em bom rigor, antes ela que o Trump, verdade seja dita, que sempre torna a coisa mais aceitável…

Mas, apesar de relativamente perleúdo quanto a esta matéria, continuo a não perceber o básico: qual foi, afinal, o crime de Isabel dos Santos que nós não soubéssemos ou não desconfiássemos?

Para os mais desatentos, lembro que a frase não acaba em qual foi o crime de Isabel. Impõe-se a leitura da restante frase, na qual, aliás, coloco o acento tónico. Foram necessários 120 jornalistas, centenas de gigabytes e programas de descodificação xpto para que, da noite para o dia, ganhássemos uma consciência crítica quanto à fortuna da mulher mais rica de África, só por acaso filha dilecta daquel que foi Presidente de Angola durante 38 (!) anos?

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Isabel dos Santos tem razão quando diz que se trata de um processo de intenções, de perseguição política. Não porque não tenha cometido os crimes que lhe são imputados (os quais, curiosamente, ela não negou), antes porque, todos aqueles que antes estiveram ao seu lado e a receberam de braços abertos, hoje lhe apontam o dedo e se demarcam como se ela fosse cão com sarna. Enquanto Isabel foi útil, ninguém questionou a proveniência dos seus milhões. Enquanto Isabel vestiu a pele de investidora e de filha do Presidente, foi a Santa Rainha que ajudava a economia dos países e estreitava relações comerciais e políticas. Agora que é só dos Santos, salgam-se as lágrimas. Agora que é arguida, destilam-se autos vicentinos, de quem embarca apenas nos epítetos judiciais. Os silêncios multiplicam-se a resguardo de epítomes tão palicianas quão vãs: “o segredo de justiça”; “os não comentários aos casos judiciais”; “a matéria sob investigação”; “o respeito pela soberania do poder judicial”, e demais quejandos que nunca comprometem quem os profere.

A despeito, convém lembrar que Costa reuniu com Isabel dos Santos, antes de avalizar a sua entrada no capital do BCP; que a CGD financiou Isabel dos Santos em 125 milhões de euros para que esta pudesse comprar acções da ZON e que, Cabral dos Santos (responsável máximo da DGE naquele banco) se desdobrou em explicações para justificar tal operação; que Augusto Santos Silva sublinhou a importância do estreitamento de relações com Angola, desde 2015 (quando o pai da Isabelinha ainda sentava o rabiote na cadeira da presidência); que Carlos César discursou no congresso do MPLA, desfazendo-se em encómios a José Eduardo dos Santos, o qual apelidou de “figura referencial da história angolana e da emancipação africana”, depois de garantir que o “MPLA e o PS têm feito um caminho comum”; que Marcelo afirmou a sua preferência por ser Isabel dos Santos a comprar a PT, considerando que o acordo entre a CaixaBank e a Santoro não teria sido possível sem a intervenção de privados, entidades reguladoras e poder político; que Teixeira dos Santos não percebeu que em 15 dias, saíram mais de 72 milhões de euros da conta que a Sonangol tinha no BIC; que os supervisores e os reguladores estiveram ausentes e em parte incerta durante todos estes processos; que, coincidência ou não, a PGR foi substituída quando estava a investigar os negócios angolanos; que há processos crime, relacionados com Angola, abertos há 10 anos e sem arguidos constituídos; que o “irritante” como foi apelidado, foi enviado para Angola e lá continua parado há quase 2 anos…

Ao invés de dedicarmos horas a saber quais os imóveis de Isabel dos Santos, quanto é que a mesma gastou em decoração ou qual o tamanho do iate, não deveríamos questionar o porquê destes negócios terem sido autorizados e permitidos. Quem deles beneficiou? Quais as contrapartidas?

Lembro que, há vários anos que as aplicações de dinheiro angolano foram proibidas em diversos países. Que, já em 2014, o Barclays recusou financiar a Amorim Energia porque a Sonangol era um dos investidores. Mas por cá, continuámos a financiar todo e qualquer negócio da terra dos kwanzas, do petróleo e dos diamantes. Não questionámos na altura, pelo que o papel de virgens ofendidas agora não nos assenta.

A revolta do povo angolano é legítima e justificada. Eles foram espoliados dos seus bens, dos seus recursos, em benefício de uma elite oligárquica que roubou ao Estado em benefício próprio. Compreendo a nossa solidariedade, a nossa indignação, mas não compreendo os seus limites territoriais. Não compreendo que a mesma não se estenda à Venezuela, quando uma população inteira morre à fome e se sabe que Maria Gabriela Chavez, a filha de Hugo, tenha, aos 39 anos, uma fortuna avaliada em 3 mil milhões de euros; ou ao Brasil de Lulinha, também ele um (muito) bem-sucedido empresário de gado, dono de fazendas de milhares de hectares e de jactos privados; à maior parte dos países africanos liderados por musculosas ditaduras, cujos líderes têm avultadas contas pessoais no estrangeiro.

Não compreendo uma solidariedade a pessoas, a regimes, mas não a causas. E, sobretudo, não compreendo que Angola nos tire o sono quando, por cá, muito há que perceber sobre as fortunas de Berardos, de Salgados, de Sócrates. Não compreendo a passividade dos (meus) patrícios, quando a denúncia de Rui Pinto de que tem provas do desvio de 600 milhões de euros do BES (o qual todos pagamos) caia em saco roto, quando os Panama papers, que a SIC de Ricardo Costa diz ter em seu poder, continuem encerrados num véu opaco ou quando a notícia de um jornal espanhol que António Vitorino se encontra ligado a um desvio de milhões da petrolífera Venezuela não encontre eco na comunicação social portuguesa… Isto sim, preocupa-me, indigna-me e revolta-me, porque não há um oceano a separar-nos, apenas umas barreiras invisíveis de interesses obscuros que a poucos aproveitam. Mas, já se sabe: santos da casa…

Confiando que as televisões não deixarão tão cedo a Isabelinha em paz, vou acender uma velinha, para que ela apareça nas fotos com aquelas covinhas sexys…