No centenário de Cesariny

É turbulento e antigo o convívio entre a Filosofia e a Linguagem: suspeitando das palavras como se de uma amante infiel que – ora pela metáfora, ora pela tautologia – a arrastasse pela indignidade da desobediência ou da traição, muitas foram as ocasiões em que a Filosofia se deixou seduzir por outras formas de significação (a matemática e a música, sobretudo) que, a seu modo, lhe pudessem oferecer também um corpo àquela particular predileção pelas coisas.

Talvez por isso não seja estranha essa ânsia por uma precisa e justa relação entre as palavras e as coisas num mundo em constante devir – ser-lhes-ão inerentes à sua natureza ou uma mera convenção do hábito? – ter palmilhado territórios tão mais inesperados quanto mais heterodoxas as veredas. Quem sabe se não teremos ainda de pagar a pitagóricos e estoicos o justo tributo por nunca ter definhado em nós aquela intuição de os poetas oferecerem uma língua à nossa intimidade na qual nos conseguimos interpretar a nós mesmos; de lhes devermos invejar a criação de um idioma íntimo, prodigioso linguajar feito exclusivamente de nomes autênticos; de, nas suas palavras, sons ou cores, reencontrarmos, enfim resgatado, tudo aquilo que sempre soubemos sem que o soubéssemos dizer. A paixão de Nietzsche pela dança e pela música, mais do que a uma superficial emotividade, ficou a dever-se à sua capacidade para captar a pureza primordial, anterior a todos os fenómenos, e à suspeição de, acima da dimensão mimética da linguagem, fervilhar uma outra – obscura, poética, simbólica – onde a exactidão e a beleza se reconciliam.

E qualquer palavra (do latim, parabŏla,ae – curva plana, com pontos equidistantes de um ponto fixo e de uma diretriz) é também ela um gesto, uma tentativa de acomodar um objecto ao encantamento de um som. Tal como na música (ou na dança), também na linguagem há uma sequência de movimentos. Quem se entrega à oculta coreografia da amizade e do amor, sabe que não é assim tão importante quem dá o primeiro passo: uma palavra é uma espera, uma inspiração suspensa onde a melodia germina já. Uma palavra é, com efeito, anúncio e promessa de um objecto, é já um pouco esse objecto. Nisto reside a graça dos poetas, esses prestidigitadores de silêncios: permitir que uma realidade continue a estar naquele lugar de onde ela se foi ou onde, na verdade, nunca chegou a estar. A palavra é, portanto, presença do ausente, esconjuro de tudo quanto tiver sido tocado pela ignomínia, pela cinza e pelo pó.

Aquele Scarlatti que ouço enquanto escrevo, por exemplo, morreu sozinho, há 266 anos, em Madrid, embora nem uma só destas pausas que agora me faz companhia deixe de me recordar, circunscrevendo o longo exercício do silêncio, o estremecido labor, da capo al coda, diante de um nome exacto, preciso. Dedicou o seu esmero à filigrana de mais de 500 sonatas de um só movimento – catálogo minucioso de minudências, inflexões obstinadas de uma mesma forma, diligente taxidermia do infinito – algumas delas compostas durante aqueles oito anos em que humilhante e penosamente esteve ao serviço da megalómana, beata e venal corte portuguesa.

Mais habituada a acolchoadas gavottes e afectadas allemandes, é provável que a Zarzuela não soubesse muito bem o que fazer quando o ‘Escarlate’ – assim se lhe referia, entre risinhos e deboche, aquela corte sifilítica e decadente – lhes atirava uma daquelas suas declinações da atenção centrípeta a um obsessivo detalhe. E, após a coda, também não deve ter sabido se havia de aplaudir ou não: para onde convergiam afinal – côncavas, ligeiras, quase pueris – aquelas melopeias repetitivas e hipnóticas? Desconhecia que a virtude não é um espectáculo e prescinde do aplauso. Disfarçado de frívolo prestidigitador, talvez Scarlatti tenha entrevisto o silêncio que imediatamente antecede a nossa morte – brevíssima pausa de semifusa – e, sem temor, amorosamente, dançou. Quem sabe se o fim dos tempos, parece dizer-nos o napolitano, não é mais do que um delicadíssimo rondeau?

Nada parece de facto acontecer enquanto a relva cresce, para além da docilidade com que esse silêncio cresce naquele punhado de vigilantes que, metódicos e redimidos já, velam à cabeceira do mundo para que ele se cumpra. Anunciando os novos céus e a nova terra, diz o Apocalipse que “ali não haverá nada mal dito” (Ap 22,3). Apenas pela voz dos poetas nos é consentida por ora a contemplação desse Paraíso: bendizer a sofreguidão da justiça, a angulosa impaciência dos que não conhecem ainda a diminuta verdade destes dias nem o pequeno acidente de um dia termos habitado o nosso mais secreto nome. É nessa estreita courela, magro alfobre da bondade enxuta de Scarlatti, que, com a mais absoluta exactidão, o nosso encontro com a beleza reivindica todos os dias “o nosso dever falar”.

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