Decorria o ano de 2011 quando Portugal oficializou o seu primeiro ajustamento do século XXI, um envelope da Troika que teve como contrapartida mais visível o equilíbrio das contas externas, e uma menos visível, o aumento substancial do peso das exportações no PIB. De fora do ajustamento ficou a massa salarial da função pública face ao valor que produz, o valor total das pensões face ao que a economia pode dar e os dirigentes dos partidos políticos face ao que nos ofereceram.
Consumado o ajustamento de 2011, e passada a ressaca da crise financeira de 2008 e subsequentes crises das dívidas soberanas da zona euro, a maior parte da sociedade portuguesa em 2015 pensou que poderia viver de novo segundo o modelo de ilusão que vigorara até 2011. Para isso contou com o PS e com o grande ilusionista Costa, todos com fome de poder e lugares para distribuir pela seita que Sócrates desenvolvera. Contou também com as crianças inconscientes do BE, com o decrépito PCP, e com um comentador na Presidência.
Esta nova vaga de ilusão teve pernas para andar porque beneficiou dos bons ofícios (papinha feita em português corrente) herdados de Passos Coelho, economia mais exportadora e resiliente, contas equilibradas, e restauração da credibilidade externa. E beneficiou ainda dos bons ventos vindos de fora, baixíssimas taxas de juro do BCE, excelente conjuntura mundial, e um fenómeno relativamente novo e inesperado quanto ao grau, a descoberta do agradável que é experimentar Portugal e seus atributos por parte dos endinheirados deste mundo.
Mas havia um não sei quê, uns sinais, umas perceções que diziam que o país continuava com disfuncionalidades profundas. A baixa taxa de natalidade mantinha-se, a emigração continuava, e os serviços públicos viam acelerar a degradação dos serviços que prestavam. A verdade é que, dada a impossibilidade política de proceder em 2011 a um ajustamento total, a parte do país que não fora obrigada a ajustar, função pública, pensionistas, e os partidos, continuava a viver com as suas ilusões e a impedir que a energia dos portugueses servisse Portugal.
Até que veio o dia em que o diabo chegou sob o nome de inflação, fenómeno económico que esquecêramos, mas que em rigor só a ilusão não nos permitiu ver que chegaria um dia. Há consenso no mundo académico de que um aumento desmesurado da massa monetária relativamente aos bens produzidos produz inflação, fenómeno que o BCE se encarregou de confecionar com a sua política de compra de ativos ao longo de muitos anos. E decorrente da pandemia, as disrupções das cadeias logísticas mundiais e a manutenção do rendimento disponível para decréscimos do produto funcionaram como ignição da subida geral dos preços, a que a recente invasão da Ucrânia e a contínua valorização do dólar face ao euro trataram de fornecer tração adicional.
E assim, no final do ano da graça de 2022, este PS, agora também consciente de que o controle das contas públicas é condição para vivermos na zona euro, e sem condições para distribuir mais amendoins pela sua clientela, informou os funcionários públicos e os pensionistas que vão iniciar o seu processo de ajustamento a que foram poupados em 2011, e que será muito longo como fora o primeiro ajustamento de 2011 no sector privado. Mas com uma agravante. Por terem vigorado as ilusões e os vícios por um período adicional de 11 anos o efeito da medicina necessária será mais doloroso, ainda por cima a ser administrada numa conjuntura internacional desfavorável e com uma demografia cada vez mais madrasta.
A pergunta que sobra é sobre quando irá ocorrer o terceiro ajustamento, o dos partidos, os grandes responsáveis por todos estes solavancos, coices e chicotadas que Portugal tem experimentado. Porque a matéria mal organizada que por lá erra já provou não saber administrar Portugal para a criação de riqueza, e por isso limitam-se à prática de atos de gestão corrente da pobreza e em dislates que terminam sempre com lançamentos a débito na conta do contribuinte. A impreparação, arrogância e falta de carácter que medra nos partidos, e que por lá levou à construção de muros que impedem que outros, mais arejados e com mais mundo, tenham voz mais ativa na política, leva a crer que não será tarefa fácil completar este ajustamento, condição absolutamente necessária para que Portugal possa aspirar um dia ser um país onde seja possível ter um projeto de vida.