De um modo geral, a legalização do aborto em vários países tem ocorrido de forma faseada, começando pelo chamado sistema de indicações, de causas determinadas, até chegar ao sistema de prazos, que corresponde à sua liberalização. E entre essas indicações ou causas conta-se, quase sempre, a situação em que o nascituro sofre de doença grave e irreversível, como poderá ser a trissomia 21 (o chamado aborto eugénico).
Parece que, em vários contextos, as consciências estão finalmente a despertar para a particular gravidade da legalização do aborto nessa situação, legalização que acompanhou historicamente as primeiras inovações nesta matéria, tidas por mais moderadas, mas que não deixa de representar um profundo retrocesso moral e civilizacional. É que a gravidade dessa legalização não reside apenas no atentado à vida que o aborto sempre representa, reside também na discriminação em função da deficiência (num tempo que tanto proclama a igualdade e a rejeição da discriminação). Uma discriminação dos mais fracos e vulneráveis. Uma discriminação relativa ao mais básico dos direitos, pressuposto de todos os outros, sem o qual outro tipo de proteção das pessoas com deficiência perde quase todo o seu sentido.
Os resultados da legalização do aborto com este fundamento estão à vista de todos: na Islândia não há praticamente crianças com trissomia 21 que tenham escapado ao aborto, na Dinamarca 98% das gravidezes em que é detetada essa deficiência termina em aborto, no Reino Unido isso sucede em 90% dos casos, em França em 77%. Há quem fale, a propósito, de um genocídio silenciado e que não choca a sensibilidade da opinião pública.
Parece que somos transportados aos tempos da Antiguidade clássica pré-cristã, em que as crianças deficientes eram vítimas de infanticídio ou abandono à nascença. Uma prática justificada por grandes nomes dessa cultura, como Cícero e Séneca, e também presente noutras culturas de várias latitudes. Uma prática cuja rejeição era um sinal que identificava os primeiros cristãos, como indica a célebre Carta a Diogneto. Com essa rejeição, nasceu a civilização cristã e humanista, assente no respeito pela dignidade de toda e qualquer pessoa, que vem marcando desde então, com imperfeições, as nossas sociedades. É por isso que pode falar-se, a este respeito, em retrocesso moral e civilizacional.
No entanto, vão-se dando passos no sentido de quebrar esse silêncio e essa insensibilidade.
Reflexo de um despertar de consciências perante a gravidade desta situação são a recente aprovação, pelo Senado do Estado norte-americano de Ohio, da Lei de Não-Discriminação da Síndrome de Down, que proíbe o aborto com esse fundamento, assim como a apresentação no Parlamento polaco de um projeto de proibição do aborto motivado pela deficiência do nascituro (a causa da esmagadora maioria dos abortos praticados ao abrigo da legislação polaca, das mais restritivas da Europa).
Para essa despertar de consciências também tem contribuído o testemunho de pessoas com essa deficiência, apresentado em várias instâncias políticas. Perante a justificação “piedosa” do aborto nestes casos, como se o aborto fosse um ato de misericórdia que poupa às suas vítimas uma vida infeliz (o que, mesmo que fosse verdade, nunca justificaria que alguém se substituísse a essas vítimas para formular esse juízo), esses testemunhos revelam que essas pessoas são felizes, apesar das suas limitações.
Disse Charlotte Fien, uma jovem de 21 anos com trissomia 21, em março, perante a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas: «Não estou doente. Nenhum dos meus amigos com a síndrome de Down está a sofrer. Temos vidas felizes. Temos apenas um cromossoma a mais. Somos seres humanos. Não somos monstros. Não tenham medo de nós, Por favor, não tentem matar-nos a todos»
https://www.youtube.com/watch?v=uL0wxQZohRY
E disse Frank Stephens, em outubro, perante uma comissão do Senado norte-americano: «Sou um homem com a síndrome de Down e a minha vida vale a pena ser vivida. (…) Somos uma inesgotável fonte de felicidade. (…) Será que não há lugar para nós no mundo?»
https://www.youtube.com/watch?v=yQJEoRhkapw
Não são testemunhos isolados. São testemunhos corroborados pela investigação científica. Um estudo de 2011, de Brian Skotko, Susan Levine e Richard Goldstein, investigadores de Harvard, Self-perception from people with Down-Syndrome, revela que a esmagadora maioria dessas pessoas declara ser feliz e dá felicidade aos seus familiares.
Será que não há lugar para eles no mundo?
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz