1 Sim, a proposta de vida cristã é “ao contrário”, está em oposição, é contracultural; sim, a sua mensagem causa perplexidade, aversão, escândalo. Sim, Jesus não morreu vítima de AVC ou atropelado por uma quadriga desgovernada em Jerusalém; Jesus foi perseguido, preso, condenado à morte, torturado e crucificado. Sim, os cristãos acreditam que Jesus, ao levar ao extremo esta sua maneira de se entregar na Cruz, fê-lo por nós e para nossa salvação. Sim, os cristãos acreditam que Jesus é o critério de medida que Deus deu à Humanidade. Disse-nos Jesus Cristo, antes de morrer, “Deixo-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”; e Jesus amou dando a vida. Amar como Jesus amou é, então, dar a vida; dar a vida como pais, como esposos, como professores, como alunos, como filhos, como amigos, como catequistas, como sacerdotes. Foi assim que, ao longo dos séculos, tal aconteceu. Não existiria hoje o Cristianismo, se ao longo dos tempos um número inabarcável de cristãos não tivesse, desta forma tão radical, vivido e morrido pelos valores e princípios da sua religião? Haverá proposta de vida mais radical?
2 O essencial da Boa Nova do Evangelho é claro, cristalino e radical. Por mais sugestiva e elaborada que seja a semântica e a retórica, por mais arejada e criativa que seja a hermenêutica dos textos bíblicos, não podemos ignorar o essencial do que Jesus nos disse nos Evangelhos: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”; ”Amai os vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vos odiarem”; ”Se alguém vos bater no rosto, ofereçam a outra face”; “Abençoai aqueles que vos amaldiçoarem, e rezai por aqueles que vos maltratarem”; “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”; “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me; “Quem não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim”; “Quem ama o seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Quem ama o seu filho mais do que a mim, não é digno de mim”; “Aquele que tentar salvar a sua vida, vai perdê-la. Aquele que a perder, por minha causa, vai reencontrá-la”. Não nos iludamos, o essencial da Boa Nova do Evangelho é claro, cristalino e radical. Jesus, na verdade, perdoa Pedro, perdoa o ladrão e a mulher adúltera, perdoa o Filho Pródigo mas desafia-os para um caminho diferente, interpela-os a mudarem de vida. Jesus, na verdade, encarnou e nasceu entre nós, cresceu e fez-se Homem, viveu, ensina-nos, e dá-nos sentidos para a vida; Jesus, ri, chora e morre por nós. Mas Jesus também nos diz: “Vai e não voltes a pecar”; “A porta é estreita”; “Convertei-vos e acreditai”. A mensagem de Jesus é, na verdade, uma mensagem de paz, de amor e misericórdia; mas não deixa de ser, também, uma mensagem exigente, dura, radical. Jesus deixa, então, claro que não será fácil segui-lo; o seu discurso mostra-nos a radicalidade da sua proposta, alertando-nos que a fidelidade à mesma provocará a discórdia entre parentes e amigos próximos; até a discórdia dentro da família, dentro da própria Igreja, surgirá, por causa do seu nome e do seu projecto de vida para o Homem. Haverá proposta de vida mais radical?
3 Desde os primeiros tempos do Cristianismo que os seus membros são marginalizados, descredibilizados e dizimados. Os primeiros Apóstolos foram perseguidos, presos, decapitados e mortos; cortaram-lhes a língua para que não falassem, cortaram-lhe os genitais, queimaram-nos vivos, cortaram-lhes as mãos para que não escrevessem e mesmo assim, num ambiente tão hostil, conseguiram, no meio de tantas outras religiões “concorrentes”, espalhar a fé pelos quatro cantos do mundo. Ao longo de 2000 anos de história, o Cristianismo gerou milhões e milhões de crentes que deram e continuam a dar, literalmente, a vida por esta causa. Ainda hoje são, ainda que os media o ignore, os crentes mais perseguidos em todo o mundo. E (também) por tudo isto, “muitos dos seus discípulos tornaram para trás, e já não andavam com Ele” (João, 6); por tudo isto, muitos dos que são, ou se reclamam portadores de valores cristãos, querem adaptá-los à sua medida (e o Homem não é a medida de todas as coisas), querem relativizá-los e vivê-los de acordo com preferências, desejos e escolhas pessoais. Desta maneira podem continuar a justificar o seu modo e jeito de viver; desta maneira podem continuar a viver com uma consciência mais ou menos tranquila. Deste modo, finalmente, podem dispensar-se a uma verdadeira Conversão. Haverá estilo de vida mais radical?
4 “Povo rebelde, obstinado de coração e de ouvidos! Vocês são iguais aos vossos antepassados: sempre resistem ao Espírito Santo” (Atos 7:51). Este discurso é intemporal, é um discurso de todos os tempos, de todos os povos, de todas as gerações. Temos, assim, de reconhecer que ao longo dos anos temos vindo a baixar o nível de sacrifício e austeridade na nossa vida cristã; ao longo dos anos temos vindo a ignorar o espírito e o sentido crítico das nossas escolhas e preferências pessoais . Temos de reconhecer que baixámos o nível de exigência da nossa vida de oração, do nosso nível de compromisso. Fomo-nos deixando intoxicar pelo veneno adocicado do materialismo contemporâneo e fomo-nos acomodando, mundanizando, secularizando. Se somos todos malta tão fixe, se fazemos, num clima de partilha e amizade, belas almoçaradas, se organizamos caminhadas e bons programas de fim de semana, qual é o problema? Qual é o problema de “trocar” de marido (ou de mulher) se a coisa já não estava a dar? Já não havia aquela chama e agora até nos damos melhor. Agora, os filhos já não ouvem tantas discussões e é bem melhor para todos. Juntam-se famílias, novos irmãos e irmãs, novos pais e mães; novas configurações, novas referências, novos modelos, qual é o problema? Passados alguns anos, porque não tentar um novo processo? (é que a coisa ainda não era bem aquela coisa; mas sempre com o maior respeito uns pelos outros…); qual é, então, o problema? Deus não quer que sejamos felizes? Mais irmãos, mais irmãs, mais pais e mães; novas configurações sobre novas configurações familiares (qual família?). Qual é o problema? (não ignorando os lamentáveis casos de violência, que obrigam a que as pessoas não possam obviamente estar juntas). Mas se assumimos que nada disto constitui qualquer tipo de problema de fundo, se tudo isto deve ser considerado normal, se tudo são, afinal, sinais dos novos tempos (e vontades), qual é então o critério e o padrão; qual é o limite (nem que seja do ponto de vista meramente sociológico)? Qual é o problema de não casarmos à igreja (não é só um pedaço de papel?)? Qual é o problema de não baptizarmos logo os bebés; quando elas forem crescidas, logo escolhem e decidem, se quiserem; Deus não se vai importar; Deus quererá que sejamos felizes. Deus é amor, Deus é misericordioso, Deus aceita-nos como somos! Não nos iludamos, estamos a dizer uma mentira, estamos a participar de uma fraude. Foi este o padrão de medida que Deus nos deu em Jesus Cristo? É esta a medida do nosso compromisso cristão? Isto é que é “amar como eu vos amei”? Isto é que é dar a vida? Isto é que é dar a outra face? Isto é que é, vende tudo o que tens, dá tudo aos pobres, vem e segue-me? Isto é que é, pega na tua cruz todos os dias e segue-me? É este o legado que queremos transmitir às novas gerações de cristãos? É este o nosso testemunho? Não será isto uma traição à memória daqueles que nos precederam, aos milhares de crentes e santos em Jesus Cristo que, literalmente, deram a vida por Ele, pela sua igreja, e também por nós? Haverá proposta de vida mais radical?
5 A dura realidade dos nossos dias mostra-nos que quando deixamos de acreditar em Deus, acreditamos (já o dizia Dostoiévski) em qualquer coisa; a dura realidade dos nossos dias mostra-nos que quando retiramos Deus da nossa vida, vamo-nos tornando individualistas, autossuficientes e independentes; a autodeterminação é a palavra-chave, e consideramos o valor da liberdade como algo absoluto. Vivemos como se Deus não existisse. E qual o problema? O problema é que tudo, na nossa vida, não passará de meras construções humanas; tudo não passará, na melhor das hipóteses, de boas vontades, de solidariedades, sentimentos e emoções, cujos critérios meramente humanos, darão a ideia de que Deus não é, afinal, necessário. É um mero adorno, um hábito dominical, exterior, inconsequente que não implica uma verdadeira mudança de vida, que não implica uma verdadeira Conversão. Recorremos frequentemente ao velho estratagema mental, de acordo com o qual, não é preciso Deus para ser bom, não é preciso Deus para ser ético, coerente e solidário, não percebendo (mesmo entre os cristãos) que, quando nos afastamos de Deus, ou seja, quando nos afastamos da verdadeira fonte daquilo que é plenamente Bom, Belo e Verdadeiro, tudo passará a ser, a prazo, algo ambíguo, disperso, contraditório, confuso, sem referências, sem legado, sem a dimensão do transcendente. Tudo passará a ser, de acordo apenas com as circunstâncias, modas, juízos, tendências e preferências do momento; do subjectivismo da época e da cultura. Basta que observemos as gerações imediatas à nossa, nas quais se incluem os familiares e amigos próximos, as quais, em variados temas, já pensam de maneira totalmente diferente e, frequentemente, contraditórias e totalmente opostas aos ensinamentos e testemunhos que nos foram legados por nossos pais e avós, pela doutrina e tradição da Igreja. Não se trata da normal e saudável maneira que cada geração encontra para transmitir e viver a sua fé. Trata-se, antes, de um novo jeito de viver onde a vida de oração, a vida e a disciplina sacramental, o mistério da eucaristia, o compromisso e vida paroquial, todos os pilares básicos da vida cristã são totalmente ignorados ou, pelo menos, relativizados e desvalorizados. Haverá proposta de vida mais radical?
6 Este é o clássico erro de Pelágio (pelagianismo), corrente de pensamento surgida e combatida nos primeiros séculos da igreja e para cujos perigos, ainda recentemente, o papa Francisco alertou. Com este jeito de pensar e viver vamos, a prazo, perdendo a dimensão espiritual e transcendente que define a nossa natureza humana, vamo-nos fechando à “experiência de Deus” e vamos, finalmente, perder a fé. Muitos de nós insistimos, recorrendo a apuradas habilidades retóricas, na permanente e infundamentada crítica à Igreja, acusando-a de ser fechada, atrasada, conservadora. Como se o nosso afastamento da Igreja e a pobreza do nosso compromisso cristão fosse consequência dessa alegada Igreja conservadora, inflexível, opressora. Cá está outro mecanismo de autodefesa psicológica que, artificialmente, vai permitindo que não tenhamos de mudar de vida, como a tal nos obriga a Boa Nova do Evangelho. Se os primeiros cristãos tivessem assim pensado não teríamos hoje cristianismo; se os cristãos ao longo dos tempos não tivessem, frequentemente com o preço da própria vida, transmitido fielmente o legado dos seus antecessores, não teríamos hoje cristianismo. Jesus diz-nos: “Céu e Terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. E passará esta geração, mas as minhas palavras não.” A palavra do Evangelho é sempre actual. Haverá proposta de vida mais radical?
7 Esta versão adocicada, sentimentalista e emocional do Cristianismo, na qual o principal objectivo de vida é a pessoa ser feliz, sentir-se bem consigo própria e aceitar-se como é… é uma compreensão muito incompleta, muito redutora da vida cristã mas, lamentavelmente crescente. O veneno do Relativismo contemporâneo infiltrou-se na escola, na universidade, nos media, na cultura, nas artes e literatura, na família, na própria igreja, potenciando um individualismo e materialismo exacerbado que privilegia, acima de tudo, o “eu” e o seu bem estar material e pessoal. Temos de resistir a esta versão frouxa, indolor, romântica, de viés psicológica do Cristianismo pois ela é profundamente caricatural, parcial e egoísta. O Cristianismo é muito mais do que o “eu”; o Cristianismo não convida a pessoa a fechar-se sobre si mesma e a viver em função da sua felicidade e realização pessoal. O Cristianismo fala da centralidade da oração, fala do arrependimento e da pureza de coração, fala da confissão e reconciliação, fala do esforço e do sacrifício, fala do sofrimento e do seu sentido último, fala do esquecer-se de si próprio, fala da comunhão, do mal e do pecado e fala da Cruz como caminho incontornável para Deus. Temos de resistir a um Cristianismo essencialmente humanista e individualista, sedutor, focado em temáticas meramente existenciais, de clichês e chavões circunstanciais; temos, finalmente, de resistir a um Cristianismo que nos dá um Jesus demasiadamente humano, metafórico, simbólico, poético; um Jesus Cristo sem Cristo, sem a Cruz, sem os pregos, sem sofrimento. Haverá proposta de vida mais radical?
8Tudo isto, porventura, nos parece exagerado, radical, extremado. Somos teimosos, orgulhosos e achamos que já fazemos muito. Damos testemunho de uma fé frágil, superficial e inconsequente. Tudo isto nos parece exagerado, radical, extremado, porque somos materialistas; não abdicamos dos nossos confortos e privilégios deste mundo das coisas; queremos boas casas, bons carros, bons fins de semanas, aquelas férias de sonho. Queremos uma vida prestigiada, queremos holofotes, palco, somos vaidosos e, frequentemente, invejosos com o sucesso dos outros. Mas o que fazer, então, perante uma fasquia tão alta, tão exigente, tão dura? Parece algo verdadeiramente inexequível, inalcançável. Será talvez por isso que precisamos de um Salvador. Perante as nossas limitações, fragilidades e inseguranças; perante o nosso pecado, todos nós (uns mais do que outros) nos sentimos ansiosos, divididos, com dúvidas e incertezas; todos, frequentemente, nos sentimos culpados. Todos temos dramas e crises interiores, por vezes terríveis e, aparentemente, insolúveis. Mas sim, temos de assumir esta nossa condição, esta marca que caracteriza a nossa natureza humana e, a partir dela, incentivar e promover o nosso crescimento interior e a sua permanente “desintegração positiva”. Com a ajuda de Deus, podemos reestruturar-nos e renascermos como pessoas novas, mais fortes, mais consistentes, mais maduras, mais honestas, mais generosas, mais livres e responsáveis. Em suma, para que possa nascer o tal “Homem Novo” de que tanto fala o Evangelho! Só assim, podermos responder ao convite à Santidade a que todos somos chamados. Haverá proposta de vida mais radical?
Sim, sou um Católico radical; radical quer dizer que é preciso ir à base, à origem, à raiz, ao fundamento!
O padre dominicano francês, Reginald Garrigou-Lagrange, O.P., definiu magistralmente aquilo que deve estar na base da prática e vida cristãs:“A Igreja é intransigente em relação aos princípios porque crê, mas é tolerante na prática porque ama. Os inimigos da Igreja são tolerantes em relação aos princípios porque não creem, mas intransigentes na prática porque não amam”. É à luz deste posicionamento de base que deve ser entendido todo o texto apresentado.