“Sinto-me bem, doutor. Nem parece que fui operado. Estou pronto para ir para casa!” – diz-me o Sr. Silva (nome fictício), de pé, fazendo movimentos com as pernas e apontando para as suas virilhas, onde dois pequenos pensos denunciam que, de facto, algo invasivo aconteceu cerca de 48 horas antes.
O Sr. Silva tem 74 anos e, tal como muitos da sua idade, sofre de aneurisma da aorta, uma doença cardiovascular insidiosa, pouco divulgada, mas com potenciais consequências devastadoras. A aorta é a maior artéria do nosso corpo, responsável pela distribuição do sangue para os diferentes órgãos e tecidos. Em pessoas geneticamente suscetíveis, por efeito de fatores de risco como o tabagismo, a hipertensão arterial e o colesterol elevado, a aorta pode sofrer uma dilatação das suas paredes formando-se assim um aneurisma. Esta doença raramente resulta em sintomas crónicos, mas pode complicar-se subitamente por rotura e hemorragia interna, o que é frequentemente fatal.
A existência de rastreios ecográficos dedicados, assim como a generalização de diversos outros exames de imagem, têm levado a uma maior capacidade de diagnóstico. Em consequência, também a um tratamento mais atempado, que pode passar por uma reparação cirúrgica nos casos em que o risco de rotura se estima significativo.
Nesta área da cirurgia, como em muitas outras, os avanços têm sido extraordinários e dignos da imaginação das mentes mais brilhantes da ficção científica – nem Arthur C. Clarke seria capaz de antever o que se desenrolou nesta área nas últimas três décadas – e o futuro próximo pode ser ainda mais espetacular. Os avanços tecnológicos e técnicos são muitos e representam uma intrincada simbiose entre investigadores, engenheiros, cientistas e médicos.
Vejamos: na área do diagnóstico, temos hoje uma capacidade muito elevada de resolução – Marie Curie estaria orgulhosa! – e de manipulação da imagem radiológica. Isto permite não só a identificação da patologia, mas também a detalhada apreciação da anatomia e o planeamento cirúrgico, utilizando estações de trabalho sofisticadas equipadas com softwares avançados que incluem inteligência artificial, cada vez mais útil e omnipresente. Transpondo para o teatro operatório, temos a intervenção guiada por radioscopia, utilizando fusão de imagens intra-operatórias obtidas pelos intensificadores de imagem com exames de TAC realizados anteriormente, entre outras possibilidades.
Como a anatomia vascular é bastante variável, os materiais implantáveis para exclusão de aneurismas aórticos precisam de ser milimetricamente selecionados para um doente em específico (no nosso caso, o Sr. Silva). Dependendo da complexidade e extensão, poderá ser preciso preservar ramos arteriais essenciais para a vida – como as artérias hepáticas, intestinais ou renais – e adaptar os enxertos vasculares a curvaturas ou alterações de calibre. Hoje é possível encomendar uma personalização completa, tal qual alfaiate requintado, produzindo uma prótese com as características exatas do seu recetor. É uma das faces da medicina de precisão.
É até possível, recorrendo a impressoras 3D, introduzir uma réplica exata do enxerto criado numa impressão da aorta do destinatário, como teste prévio da sua eficácia, ou “alimentar” um simulador digital com dados de TAC e realizar o procedimento em causa num simulacro de alta-fidelidade, antes do caso real.
Também na sala cirúrgica muito mudou. As equipas trajadas com vestuário de proteção radiológica e, ao centro, um sofisticado aparelho de radioscopia com múltiplos botões e ecrãs, denunciam o que se passará a seguir. Ao invés de uma extensa e complexa exposição anatómica – a “cirurgia maximamente invasiva”, como lhe chamava um colega italiano, perito em cirurgia aberta da aorta -, tudo isto é agora feito através de orifícios milimétricos, tipicamente nas artérias femorais, a nível inguinal. Esta mini-invasibilidade tem óbvias vantagens em termos de risco, impacto fisiológico e recuperação.
Este tipo de operação designa-se por endovascular e é a arte de construir o veleiro dentro da garrafa, através do gargalo. Isto só é possível graças a uma notável evolução de materiais, técnicas e conhecimento que não mostra sinais de abrandar. Pelo contrário, cada vez se caminha para mais pequeno, mais seguro, mais biocompatível, mais duradouro. Quando falo com o Sr. Silva na manhã de quarta-feira, vestido “à civil” e pronto para regressar a casa, imagino em que fase da recuperação estaria se, dois dias antes, tivesse sido operado ao seu extenso aneurisma por via aberta – seguramente ainda numa cama de cuidados intensivos. Felizmente nunca irá conhecer esta diferença.
Nem tudo são vantagens – existem ainda limitações relacionadas com a durabilidade dos materiais, com a sua capacidade de adaptação à degenerescência dos tecidos humanos, como o risco de infeção, entre outros. E haverá ainda aqueles doentes para quem a tal “cirurgia maximamente invasiva” continua a ser a melhor opção. Mas enquanto não surgir uma nova tecnologia disruptiva (um comprimido, talvez?), a solução endovascular apresenta inegáveis vantagens para a maioria dos doentes e veio alargar o espectro de tratamento a quem não teria condições para suportar uma operação tão extensa. É um exemplo do engenho humano posto ao serviço da saúde da população.
Frederico Bastos Gonçalves é consultor de Angiologia e Cirurgia Vascular no Hospital de Santa Marta, coordenador de Angiologia e Cirurgia Vascular no Hospital CUF Tejo e professor auxiliar convidado da NOVA Medical School. É co-autor das diretrizes para o tratamento de aneurismas da aorta da Sociedade Europeia de Cirurgia Vascular, emitidas em 2024.
Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.
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