“Aos médicos e aos enfermeiros, exige-se tudo, pede-se de mais, espera-se sempre”
António Barreto, sociólogo português

“A insurreição é a condição da nossa vida. Temos de nos insurgir contra tudo o que está mal”
Frei Bento Domingues, teólogo português

 

Introdução

“As pessoas podem duvidar do que dizes, mas acreditarão no que fizeres”
Lewis Carroll, escritor e poeta inglês

“Dar o exemplo não é a melhor maneira de influenciar os outros- é a única”
Albert Schweitzer, médico, teólogo alemão

“Num mundo o que enfrentamos pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado”
James Baldwin, escritor e ensaísta norte-americano

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Os temas relativos ao setor da saúde estão novamente na ribalta mediática. Tal como seria expectável, de acordo com o que venho refletindo e escrito desde há muitos anos a esta parte. Por tal me considero, como já disse algures, no meio de tertúlias de acalorados amigos, de familiares e de colegas, um dos menos surpreendidos, embora, também, certamente, um dos mais inconformados, como se preferisse genuinamente não ter razão na argumentação que habitualmente utilizo para justificar o meu estado de espírito.

Depois de dois anos de uma devastadora pandemia, em que o juízo comum formulado foi, um tanto ou quanto compreensivelmente, o de destacar o facto de tudo ter corrido menos mal do que, na minha opinião, seria a ideia que a grande maioria dos cidadãos conjeturou a priori no início. E, desse modo, se ter exaltado, na figura da atual Ministra, termo-nos salvado de um desastre que parecia estar iminente e ser inevitável, ao ponto do Presidente da República, numa atitude simbólica, ter condecorado o SNS em março do corrente ano de 2022, na pessoa de Marta Temido, pelo “notável feito” obtido. Contudo, há que enfatizar, a verdade é que os verdadeiros e incomensuráveis problemas deste setor não poderiam deixar de reemergir de seguida, como está presentemente a acontecer. Esta mera e efémera ilusão não deixou de servir para ocultar, veladamente, a verdadeira causa de tal inesperado resultado. É que o mesmo, sendo certamente o fruto de um conjunto de vários determinantes, foi muito mais a consequência do empenho incondicional dos profissionais de saúde do SNS, do que dos meios colocados à sua disposição ou da mestria da estratégia implementada pelos decisores responsáveis dos diversos níveis hierárquicos do Ministério da Saúde, tal como expus no meu último livro, apresentado em novembro de 2021, intitulado “Reflexões em tempos de pandemia: Histórias de vida, de prazer, de sofrimento e de morte”.

 

Os contextos

“Saber exatamente qual a parte do futuro que pode ser introduzida no presente é o segredo de um bom governo”
Victor Hugo, escritor e poeta francês

“Princípio: uma coisa que demasiadas pessoas confundem com interesse”
Ambrose Bierce, escritor e jornalista norte-americano

“Os detentores do poder ficam ansiosos por estabelecer o mito da sua infalibilidade que se esforçam ao máximo por ignorar a verdade”
Boris Pasternak, escritor e poeta russo de alegada descendência sefardita portuguesa por parte do pai

 

Embora se ouça muitas vezes o vulgar cidadão dizer que os profissionais de saúde são uns privilegiados por “terem sempre emprego garantido” e auferirem “proventos económicos acima da média das restantes profissões”, essa sentença não é assim tão verdadeira como se pensa. Não querendo reivindicar, de forma alguma, sumária e demagogicamente, o direito dos médicos a ficarem “ricos” no meio dos “pobres”, os restantes setores da sociedade deveriam antes consciencializarem-se de que a exigência de atualização profissional sem par e a disponibilidade para priorizar a saúde do outro em desfavor do interesse próprio, como se viu na pandemia, ou que se assiste diariamente nos Serviços de Urgência, nos Blocos Operatórios e em muitos outros “palcos” menos falados e visíveis por esse país fora nas instituições do setor público, não se compadece com ordenados efetivamente baixos para a carga horária e a responsabilidade que têm. Para além de estarem congelados há mais de uma década, altura em que, de súbito, “encolheram” 10%, como medida, entre outras, para se tentar salvar o País da temida “banca rota”.

A verdade é que muitos médicos continuam rotineiramente a fazer um número de horas extraordinárias muito superior ao legalmente estabelecido e muito além da idade limite, às vezes sem o descanso compensatório a que teriam legalmente direito, só para não deixarem as escalas ainda mais vazias e os doentes sem resposta, e, não, como muitas vezes cinicamente se insinua, para ganharem ordenados “principescos”.  O princípio que tem de ser interiorizado pela sociedade é tão simplesmente este: se é realizado esse tipo de trabalho, é porque ele é vital para os restantes cidadãos, e, logo, tem de ser adequadamente remunerado. Embora, a verdade é que aqueles mesmos médicos têm que dividir diariamente as tarefas com outros seus colegas contratados à tarefa, que não têm responsabilidade idêntica e, quase sempre, com um grau de diferenciação hierárquica e técnica inferior, mas que auferem quantias de dinheiro várias vezes superiores ao que lhes é creditado, o que é uma tremenda e injustificável injustiça.

As carreiras profissionais foram completamente destruídas, nas quais as avaliações com base no mérito efetivo do exercício de cada especialista na sua função, feitas para a graduação ou para a subida de escalão, foram substituídas por um processo, ora eternamente adiado, ora obscenamente burocrático. No qual os avaliadores são, com frequência, não os pares mais diferenciados dos avaliados, mas antes alguém que é incumbido de preencher uma mera grelha composta por ridículas “picuinhices”, contudo, sem que possam recusar-se a fazê-lo pelo espartilho legislativo vigente (no que concerne aos segundos). Para cúmulo, estando contingentado nestes últimos, à partida, independentemente do mérito de cada um dos concorrentes, o número daqueles que irão progredir.

As condições de trabalho são cada vez pais precárias, pois, o Estado deixou de investir, há muito, na melhoria significativa das instalações e do parque tecnológico, pelo que a espera pela marcação de exames auxiliares de diagnóstico e a consequente obtenção dos respetivos resultados, é completamente incompatível com o exercício de uma Medicina com a adequada qualidade. Muitos serviços encontram-se no limite da viabilidade, frequentemente com um número de elementos do quadro inferior ao dos apelidados de “tarefeiros”, quando não com apenas um Chefe de Serviço que é o Diretor dele mesmo. O envelhecimento da elite dirigente na classe médica é avassalador, ao ponto de, com os concursos de provimento a ficarem desertos de concorrentes cada vez com mais frequência e com a saída dos jovens especialistas para outros projetos profissionais, incluindo para o estrangeiro, os respetivos serviços poderem vir a estar, em breve, na contingência de ter de fechar portas uns atrás dos outros, ou de serem concessionados a organizações privadas convencionadas. Considere-se o caso da Imagiologia, em que cada vez mais são requisitadas TACs em vez de ecografias em muitos dos hospitais e, sobretudo, em contexto do Serviço de Urgência, porque o especialista de Imagiologia de uma das inúmeras firmas especializadas, está algures a ver, por via remota, as imagens que lhe são remetidas. Assim se quebrando uma das regras básicas da medicina clínica: pedir o exame mais adequado para cada circunstância e permitir estabelecer uma discussão presencial interpares, sempre que tal se justificar, entre o clínico que requisitou o exame e o médico que o executou. Porque isso é, não raramente, vital para se chegar ao diagnóstico certo e, consequentemente, para se salvarem vidas e poupar recursos que já de si são tão escassos.

As exigências assistenciais esgotam quase completamente a carga horária dos médicos, e, nas contratualizações internas, é a mera contabilização dos atos realizados, a par do balanço contabilístico entre as “despesas” e os chamados “proventos” que verdadeiramente interessa às hierarquias institucionais, como se a qualidade efetiva do desempenho e a capacidade de corresponder às reais necessidades dos doentes fosse apenas isso ou dessa forma traduzível. Não haver tempo para fomentar e realizar regulares discussões clínicas interpares e interespecialidades, ou para discutir problemas intersectoriais dos diversos serviços, passou a ser perfeitamente secundarizado, como se de em luxo supérfluo ou de um exótico capricho se tratasse. O mesmo se poderia constatar acerca da possibilidade de integrar projetos de investigação ou de participar em ensaios clínicos internacionais, o que só poderia voltar a ser realizável com outro tipo de mentalidade e de organização, que permitisse contar com um número mais confortável de profissionais, a par da candente necessidade de se desburocratizar os complicadíssimos processos inerentes que são impostos.

Muitos serviços encontram-se em acentuada desestruturação, dada a nefasta desmotivação cada vez mais prevalecente, o que se materializa, por exemplo, num incremento progressivo dos médicos que pedem redução do seu horário. O que é do “incontido agrado” das administrações, pois vêm nisso, antes, mais um meio de economizarem uns quantos euros no orçamento que têm de submeter à apreciação e aprovação da tutela.

As ferramentas informáticas que são disponibilizadas, visam mais aprimorar o controlo administrativo dos índices de produção, do que proporcionarem uma mais eficiente gestão clínica. Ainda por cima, não permitindo a sua desejável interconetividade de forma generalizada, o que faz perder o acesso a muitos registos fundamentais ao adequado diagnóstico e tratamento de inúmeros doentes, com um maior dispêndio de recursos na duplicação desnecessária de pedidos de exames auxiliares e com o incremento substancial na duração do processo de avaliação de cada doente, o que se traduz num inerente prejuízo para o mesmo. A que se acrescenta a demora infinita que a aprovação do imprescindível regime de comparticipação da inovação terapêutica farmacológica leva a ser concluído, até chegar aos doentes que dela necessitam, o que nos coloca na nada honorífica posição de estarmos na “pole position” no contexto comunitário.

A autonomia gestionária das administrações, das direções técnicas (médicas e outras) dos serviços, é quase nula, porque o que interessa verdadeiramente é evitar eficazmente que existam notícias bombásticas nos tabloides no dia seguinte, desperdiçando-se a quase totalidade das energias e do tempo disponíveis na gestão dos “pequenos” problemas do dia a dia, em vez de se conseguir gizar e aplicar qualquer plano a médio e longo prazo que fosse capaz de responder às necessidades efetivas das populações e dos profissionais. Assim, adiam-se ao limite do absurdo e desde há muitos anos, projetos candentes, tais como os da construção/ampliação dos hospitais de Lisboa Oriental, de Faro, de Gaia, de Évora, de Setúbal e de muitos outros, tal como de centros de saúde, mesmo sabendo-se que o que se gasta anualmente em obras provisórias de adaptação chegaria, ao fim de não muitos anos, para concretizar alguns deles.  Embora se tivesse promovido, e bem, projetos de hospitalização domiciliária, todavia, tal não obstou ao facto de Portugal ser dos países comunitários com menor taxa de camas para doentes agudos, bem como estar muito aquém de possuir o número de vagas necessárias para cuidados de reabilitação, continuados, paliativos ou na esfera da saúde mental. Razões que, a par da debilidade social e da iliteracia para estas questões por parte de largas franjas da população, explicam, em grande parte, a sobrepopulação dos Serviços de Urgência, fenómeno que as autoridades governativas teimam em não reconhecer que são estas, em parte, as verdadeiras causas, a par da real rotura dos Cuidados de Saúde Primários.

A formação das novas gerações de médicos corre risco iminente, em certos casos, pelo caos em que muitos serviços de várias instituições vivem, ao ponto de não serem só os médicos mais jovens que saem do SNS, mas também os cargos de direção médica se tornam progressivamente menos atrativos para uma franja cada vez maior dos elementos do sector dos mais seniores, dada a existência de hierarquias paralelas que não permitem a verdadeira responsabilização de quem dirige os serviços. A par da enorme desmotivação por não se conseguir reunir condições adequadas para o exercício profissional ou completarem-se as escalas das urgências. A título meramente ilustrativo, apenas referiria que, presentemente, com a necessidade de dar resposta às Urgências Obstétricas, os internos destes serviços quase que deixaram de contactar de forma estruturada com a patologia ginecológica, o que irá ter consequências futuras desastrosas, quer para eles, mas igualmente para o sistema de saúde, as instituições e os próprios doentes. Talvez, por isto mesmo, se noticia que, em alguns hospitais, para preencher as escalas de urgência e evitar o seu encerramento, se desviam recursos humanos de outros locais de atendimento e de formação, como as consultas externas, as enfermarias, e, mesmo, as atividades desenvolvidas nos blocos operatórios.

O conjunto descrito destas realidades é, por si só, suficiente para colocar grandes incertezas quanto ao futuro dos serviços e, consequentemente, das próprias instituições, pois constata-se que, durante anos a fio, os planos de ação anualmente elaborados, embora fossem sendo aprovados, nunca foram postos verdadeiramente em prática na sua plenitude, uma vez que as medidas propostas para solucionar as necessidades identificados quase nunca saem do papel. A que se junta a nomeação ocasional de diretores, por parte de algumas administrações, que desvirtua completamente aquilo que lhes dava antes dignidade e a consequente autoridade natural, pois não respeitam o grau de diferenciação técnica e hierárquica, as aptidões para a liderança e a concentração de experiência que facilitavam a natural aceitação imprescindível dos seus pares.

A problemática ao nível dos Cuidados de Saúde Primários não é de todo menos dramática, até porque muito do que disse anteriormente, também se aplica por inteiro neste âmbito. No domínio da Saúde Pública, especialidade injustamente desvalorizada pelas sucessivas hierarquias e quase que “apenas” supostamente remetida a cumprir trabalho burocrático de “gabinete”, tomaram as autoridades, finalmente, a devida consciência da sua enorme valia para o eficaz combate aos grandes problemas sanitários que caracterizaram os últimos dois anos. Pelo que se impõe que passem a ter os meios que nunca lhes deveria ter faltado, pois tudo se encaminha para que novas pandemias nos venham a surpreender de futuro.

Nos Centros de Saúde e nas USFs, a parca realidade vigente, conduziu à sua transformação numa verdadeira “linha de montagem de ver doentes” como muitas vezes já tenho denunciado, pois o número esmagador de cidadãos que está “apenas” aí inscrito, mas sem “direito” a Médico de Família, é agora superior a 10% da população residente. Só não sendo muito mais elevado, porque as listas de muitos dos seus médicos foram ampliadas compulsivamente, por meio administrativo, dos previstos 1500 “utentes”, para mais de 2.000, quando não, a rondar o dobro daquele número. Como é de intuir de imediato, o tempo disponível para cada ato médico é reduzidíssimo, o que impossibilita completamente tentar iniciar a retoma das candentes tarefas de acompanhamento clínico regular e de deteção precoce dos principais problemas de saúde individual das populações, quer na doença aguda, quer na patologia crónica, com especial enfoque nas doenças de prognóstico mais grave e/ou com maior prevalência, que foram, parcial ou completamente suspensas durante a presente pandemia. Porque, pura e simplesmente, era humanamente impossível garantir, em simultâneo, a notificação dos casos de COVID, a vigilância clínica dos infetados por SARS CoV-2 em ambulatório, a observação dos que eram direcionados para os ADRs da comunidade, vigiar o magnânimo, complexo e demorado processo de vacinação, e, fazer tudo o resto… que já normalmente tinham muita dificuldade em cumprir adequadamente!!! Pena é que não tivesse sido reconhecido que, muitos destes colegas, trabalharam horas a fio em casa a vigiar os seus pacientes, por vezes também eles infetados, utilizando o seu computador e o seu telemóvel pessoal, sem, no entanto, reivindicarem ou receberem qualquer hora extraordinária. Mais palavras para quê?

Uma mera questão de confiança e de respeito

“Os homens distinguem-se por aquilo que mostram e assemelham-se por aquilo que escondem”
Paul Valery, filósofo e escritos francês

“Vivemos todos sob o mesmo céu, mas nem todos têm o mesmo horizonte”
KonradAdenauer, ex-chaceler alemão

“O homem comum é exigente com os outros, o homem superior é exigente consigo mesmo”
Marco Aurélio, ex-imperador romano

A relação interpessoal (entre médico e doente, entre chefe e subordinado, entre patrão e empregado, entre pai e filho, entre marido e esposa, etc.) deve ter como base, para ser profícua e perene, o respeito e a confiança mútuos.  Tal se aplica, na plenitude, na minha perspetiva, ao que se passa entre, por exemplo, o profissional de saúde e o seu patrão no SNS, ou seja, com o Governo, enquanto representante delegado do Estado.

Há uns quantos anos, a então Ministra da Saúde, Leonor Beleza, que ficou célebre por ter conseguido unir a classe médica, como nunca antes se vira depois da implantação do regime democrático em Portugal, numa “desesperada” tentativa de puder demonstrar que o que os médicos queriam verdadeiramente, era continuar a irem à tarde para os seus compromissos privados, criou a modalidade da exclusividade de funções, naquilo que, penso, iria permitir hipoteticamente demonstrar sua pérfida premissa. Debalde. O que aconteceu, foi uma enorme adesão da classe a essa modalidade proposta, o que a deve ter surpreendido e deixado sem argumentos capazes de suportar a sua alegada tese. Nesse regime, no qual existia, não só um acréscimo da carga horária semanal em cerca de 20%, estava consignado também um incremento de 40% da massa salarial e previa-se explicitamente que implicaria um ganho de 1 ano para a reforma, por cada 4 em que o médico estivesse a trabalhar sob essa condição.

Uns anos mais tarde, contudo, como que fazendo “letra morta” desse compromisso escrito, o governo de então, legislando com efeitos retroativos, também decidiu acabar unilateralmente com essa “benesse”. E desse modo, a geração que presentemente está a assegurar maioritariamente o SNS, que aos 60 anos deveria ter mais do que os 40 anos de serviço agora exigidos, logo, com direito à reforma por inteiro, viu-se defraudada nessas suas naturais e legítimas expetativas.

Na mesma senda e à semelhança deste mais do que repugnante comportamento, muito próprio de quem não é “pessoa de bem”, outra lei passou a possibilitar o exercício da atividade privada dentro dos hospitais públicos aos médicos em regime de exclusividade que fossem, ou Diretores de Serviço, ou que tivessem a categoria de Chefe de Serviço. Desde que o fizessem em horário não coincidente com o que tinham enquanto funcionários do SNS, pagassem uma percentagem estabelecida dos proventos auferidos à instituição onde exercessem essa atividade, e, por fim, que custeassem o trabalho da funcionária administrativa que os assessorasse. Tal como se passa em muitos hospitais públicos por essa Europa fora, pois, aí, não a consideram incompatível, vendo antes nisso, uma maneira de atrair para se fixarem no serviço público os supostamente “melhores dos melhores”.

Porém, tal como já referido antes, o mesmo Estado cessou unilateralmente com esta prática e com efeitos retroativos, o que levou à natural revolta dos médicos envolvidos, por se sentirem legitimamente defraudados naquilo que supunham ser um compromisso de honra do seu patrão. Pois estavam no estrito cumprimento da lei, e, consideravam, justamente que, se o legislador pretendia alterá-la, essa alteração nunca deveria ter efeitos sobre compromissos anteriormente firmados, mas valer apenas para futuras contratações.

Mas, se passou a existir uma legítima falta de confiança, tudo se agravou pelo constante desrespeito a que os médicos têm vindo a ser sujeitos. Os exemplos são inúmeros, pelo que apenas referirei os que penso serem mais significativos. No intuito “obsessivo” de considerar os profissionais, em particular os médicos, pessoas não idóneas no que concerne ao cumprimento dos seus compromissos institucionais mais elementares, instituiu-se o controlo eletrónico de assiduidade. Mais uma vez a realidade dos factos se encarregou de virar a “caça contra o caçador”. Assim, começou a verificar-se nos hospitais do SNS, a acumulação, em muitos casos, de inúmeras horas que passaram a ser “depositadas” numa denominada “bolsa”. Como não se queria reconhecer tal facto, pois ia contra o que seria suposto irem constatar, e, porque, muito menos pretendiam ir agora ter de pagar essas horas como extraordinárias, rapidamente fizeram uma regulamentação, em que, ao fim de um certo período de tempo, caso não fossem gozadas, como frequentemente acontece para não deixar os doentes sem a resposta que necessitam, estas são pura e simplesmente subtraídas à dita bolsa, como se nunca tivessem sido realizadas, iniquidade que se generalizou logo de seguida.

Ao passo que, no âmbito dos Cuidados Primários, pura e simplesmente a sua parametrização só permite somar tempo negativo, se acaso o profissional se atrasar, nem que sejam uns escassos minutos. Embora jamais sejam contabilizadas as horas que os médicos ficam a mais nos centros de saúde e nas USFs, muitas vezes para fazerem os registos e os relatórios que não têm tempo durante os escassos minutos que dura a consulta médica propriamente dita, só para o utilizarem, o mais possível, no trabalho assistencial. “Ficam porque querem”, contra-argumenta a hierarquia de forma soezmente sínica…!!!

Nos hospitais, se faltam os profissionais que têm a responsabilidade real para resolverem os complexos problemas efetivos dos doentes, e sem os quais não se pode dizer que se ministram verdadeiros cuidados de saúde, o número de administradores tem vindo a sofrer um inusitado incremento desde há bastantes anos a esta parte, porque, mau grado o enorme volume de computadores e de programas informáticos existentes, mais do que a qualidade da prática médica e o adequado tratamento dos doentes, o que interessa mesmo à hierarquia ministerial, é produzir estatísticas e fazer o controlo apertado daqueles que estão no trabalho assistencial. Secretariado clínico profissionalizado para assessorar os Diretores de Serviço e de Enfermagem, é coisa quase que vestigial, ao passo que secretariados para o volumoso contingente de administradores, é algo que não pode faltar. Não será isto um exemplo eloquente da chocante inversão de valores que deveria presidir à real missão assistencial destas instituições, apetece perguntar?

E o que dizer das alegadas notícias recentemente difundidas, segundo as quais o atual Ministério da Saúde pretenderia penalizar financeiramente os colegas Médicos de Família, que tivessem doentes que contraíssem doenças sexualmente transmissíveis ou que recorressem à interrupção voluntária da gravidez, ou, em contraponto, que anunciam premiar economicamente as Administrações das Unidades Públicas Prestadoras de Cuidados de Saúde pelos alegados “sucessos” no atingimento das metas de produção previstas nos respetivos Orçamentos Programa. Negociação que cada vez menos conta com a participação dos responsáveis máximos dos serviços, que ficam, desse modo, arredados do acesso a partilharem esse prémio, quando são ELES que efetivamente organizam (e também prestam) a atividade assistencial, muitas vezes sem os meios adequados? Onde está a moralidade, pergunto?

É que esta vontade, literalmente “voraz” de controlar os meios para atingir os objetivos que o Ministério define, chegou agora ao cúmulo, com o anúncio da criação de novas estruturas responsáveis pela gestão operacional, aos níveis nacional e regional, no novo Plano Nacional de Saúde recentemente aprovado, não para substituírem as já existentes, mas para, alegadamente, as reforçarem. Ao passo que se atraem médicos para os serviços, aos quais atribuem a classificação de “carenciados”, o que implica uma majoração de 30% do seu salário mensal, mas que, de forma inadmissível, é retirado compulsivamente ao fim de 3 anos, mesmo que este esteja ainda numa situação mais depauperada no que respeita aos meios humanos do que anteriormente, e, o que é inadmissível, sem se ouvirem as Direções dos Serviços ou das Instituições.

Como quererá, a atual Ministra da Saúde, que os profissionais de saúde se sintam, quando assistem a estas tomadas de decisão pelo seu Ministério, sabendo que os Diretores de Serviço e os Diretores Clínicos têm vindo a ter de encerrar diariamente serviços importantes para as populações, por falta de condições logísticas, e, sobretudo, pela exiguidade dos meios humanos disponíveis. Ou que os médicos denominados vulgarmente de “tarefeiros”, têm a sua ficha institucional de funcionário no setor do Aprovisionamento e não no dos Recursos Humanos, porque aí, a rúbrica da despesa já não é inscrita da mesma forma e não obedece às mesmas regras apertadas de controlo gestionário da hierarquia regional e ministerial, como se os mesmos fossem equiparados a qualquer bem de consumo descartável, ou seja, exatamente como num mero processo aquisitivo de agulhas ou seringas. Repugnante!!!

Sentimento de natural repulsa que se ampliou imenso quando se toma conhecimento do anúncio muito recente da forma prevista pela Ministra para resolver “a preceito” os problemas decorrentes da falta de médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar, segundo a qual se prevê recorrer ao serviço de “especialistas noutras áreas, ou, mesmo, aos que não têm qualquer especialidade”. Como se pretendesse, de uma penada, não só desvalorizar essa especialidade, bastante mais complexa e exigente do que o Ministério da Saúde pretende fazer crer com estas medidas, mas, igualmente grave, desrespeitar o direito dos doentes a disporem de uma assistência de qualidade, como se lhes quisesse “vender gato por lebre”, como sabiamente diz o famoso aforismo popular. Inqualificável!!!

Conclusões

“A saúde não se pode comprar. Mas permite fazer grandes poupanças”
Anne Wilson Schaef, psicóloga clínica norte americana

“O negócio que não rende nada além de dinheiro é um mau negócio”
Henry Ford, industrial e inventor norte-americano

“O português ideal não precisa de ir à escola, nem ao hospital, nem ao tribunal. Na verdade, o português ideal, é um português defunto”
Ricardo Araújo Pereira, humorista português

Os tempos por que passamos caracterizam-se, entre outras coisas, pela valorização demagógica de meras intenções, pouco parecendo contar se há ou não concretização posterior dos planos que se anunciam antes com grandes parangonas. É assim com a Humanização e com a Qualidade dos Serviços, expressões muitas vezes repetidas nos discursos, mas por quem só delas tem uma noção teórica, ou por quem quer fazer destes, apenas, enganadora propaganda. Para responder à crise, alega-se com a falta de médicos, culpando a sua Ordem, a quem se ameaça vir a condicionar o respetivo poder regulatório delegado pelo Estado desde há décadas, por esta, supostamente, estar a defender de forma indevida os “privilégios” dos seus associados, acima do dever de pugnar por providenciar assistência aos doentes que clama ter por missão defender. A resposta, seria, como disse indecorosamente o Presidente da Câmara Municipal de Odivelas, no passado mês de maio, retirarem-lhe estas prerrogativas legais e formar médicos às catadupas, para que estes nunca viessem a faltar. De preferência, presumo eu, acéfalos e acríticos, logo, incapazes de “levantar cabelo”, como soe dizer-se, pois se ousassem causar qualquer espécie de obstáculo a tão “elevado” propósito, seriam logo despedidos com “justa causa”, uma vez que haveria sempre um outro para ocupar o seu lugar. Mas que engano colossal e que bárbaro insulto.

Portugal tem uma média de médicos/100.000 habitantes muito superior à maioria dos países europeus. Sendo verdade que existem, em algumas especialidades, uma verdadeira carência bem identificada, como é o caso da anestesiologia, o que provoca uma baixa rentabilidade generalizada dos blocos operatórios, tal como se constata um notório envelhecimento das elites médicas nos Serviços Hospitalares e nos Cuidados Primários, o que não permite antever muita facilidade na substituição dos seus Diretores que se forem afastando pelas mais diversas razões. O grande problema é, acima de tudo, de organização, de capacidade de saber atrair as novas gerações para o Projeto SNS, desmotivadas que estão pela falta de condições de realização profissional, pelos baixos salários que auferem e pelo verdadeiro “inferno de vida” que vivem nas urgências e que reconhecem no exercício das funções de Direção dos Serviços (veja-se o extraordinário texto escrito para uma coluna semanal de opinião, publicado na edição da Revista do Expresso de 9 de julho, pelo meu colega José Gameiro, intitulado “Obrigado pai e mãe”). Porque é que, então, se comportam como se pretendessem desvalorizar tanto as razões verdadeiras do facto do trabalho destes médicos ser tão reconhecido no estrangeiro, mas não no seu próprio país, é a pergunta que, quem nos governa e quem administra Hospitais e ACES deveria saber responder, para daí retirar as ilações que se impõe, e, desse modo, ajudar a inverter um caminho que só pode conduzir a uma pérfida autodestruição do sistema.

Sou da opinião que, suponho, será partilhada pela grande maioria dos cidadãos, que deveria haver uma planificação realista que permitisse que o número de médicos fosse aquilo que é efetivamente o necessário à sociedade, com uma distribuição equilibrada pelas diversas especialidades, dando primeiro o enfoque nas generalistas. Provocar artificial e intencionalmente um excesso, como já referi, mas que pressinto que muita gente ocultamente se deliciaria em surdina, é não permitir que os mesmos ganhem a experiência necessária à qualidade do seu desempenho, é obstaculizar uma formação de qualidade e que é muitíssimo exigente, é promover uma postura, em última instância, na qual os médicos passem a ver o seu doente, não acima de tudo como alguém que sofre e que necessita da sua ajuda, mas antes um mero e simples meio de sobrevivência. O que traria mais do que nefastas consequências à prossecução da verdadeira missão dos supostos discípulos de Hipócrates, bem como constituir-se-ia num insanável atropelo à ética e à deontologia profissionais que deveriam antes permanecer respeitadas como se intemporais fossem para a eternidade.

Seria, ainda, como já está a acontecer, um estímulo à prática generalizada da medicina dita “defensiva”, na qual se privilegia a requisição acrítica, descontextualizada e incoerente de um rol interminável de exames auxiliares de diagnóstico cujos resultados, frequentemente, não sabem interpretar, acima da utilização primeira da semiologia e da anamnese cuidadosamente exercitadas, que permitisse gizar um prévio diagnóstico diferencial assertivo a ser, então, confirmado ou infirmado por exames criteriosamente requisitados, e, que, por via disso, possibilitasse a prática de uma medicina imbuída de verdadeira cumplicidade entre os dois atores da tão peculiar relação: o médico e o seu doente. Em vez de acarretar um aumento exponencial dos seus custos, dificultando ainda mais a necessária sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde, sejam eles públicos ou privados, deixando o doente, numa primeira fase, iludido ou, mesmo, inebriado, mas, por fim, descrente e insatisfeito.

Não será, assim, por mera coincidência ou acaso que as médias para entrada no curso de medicina estão a baixar, que uma percentagem crescente de estudantes ou de internos assume querer fugir o mais possível das desgastantes atividades assistenciais, designadamente ao nível da urgência, que implicam um contacto direto e prolongado com o doente, em condições de grande adversidade, sobrevalorizando a hipótese de se virem a dedicar antes à investigação, à docência, à gestão, ou, em último caso, às especialidades que permitem sobretudo o acesso à realização de técnicas e à utilização de meios tecnológicos. Pelo que o fenómeno verificado no último concurso, de terem existido, pela primeira vez, vagas por ocupar nas Faculdades de Medicina, não terá sido fruto de uma circunstância meramente furtuita, mas antes um primeiro sinal objetivo desta enorme crise vocacional. Então, deve perguntar-se, para quê fomentar a criação de mais faculdades, quando Portugal é já, quase, um recordista europeu? E o que dizer do enorme atrevimento e despropósito do anterior Ministro do Ensino Superior, pensar em promover a criação de uma especialização em Clínica Geral, logo a partir do início da faculdade, com uma formação pré-graduada mais curta e com um currículo académico mais “aligeirado”, quase à semelhança dos famosos “médicos de pé descalço” da era maoista na China. Ou será que pretenderão substituir, a prazo, os médicos por outro tipo de profissionais, ou, quiçá, por robots?

Terminaria esta dissertação, afirmando que existem vários dramas em todo este infernal enredo. O primeiro, é que também noutros setores estruturantes da sociedade, tais como a defesa, a justiça e o ensino, a situação é igualmente muito preocupante. O segundo, é que este Governo é efetivamente o maior culpado, mas APENAS porque é o que está agora em funções. A evolução do último quartel e as propostas da oposição que são conhecidas, faz-me concluir que existem muitos outros responsáveis, e, num futuro próximo, temer que escassas alterações venham a existir, caminhando o SNS lentamente para uma morte inevitável por asfixia. O terceiro, é que, infelizmente, a opção pelos seguros existentes e pelos grandes grupos privados de saúde em atividade, está muito longe de conseguir ser uma alternativa confiável para a maioria dos cidadãos e dos profissionais. Sobretudo quando os primeiros padecerem de algumas áreas específicas do vasto universo nosológico, ou forem vítimas de cataclismos, de pandemias, ou acometidos por uma denominada doença rara e necessitarem de medicamentos órfãos.

Finalmente, que, no atual contexto, é uma pura fantasia lírica exigir-se uma qualquer forma de exclusividade (que não um horário completo, entenda-se), tenha ela a denominação que tiver, a qualquer um destes “patrões”, por uma mera questão de bom senso e de realismo: é que não aconselho nenhum colega a entregar o seu futuro nas mãos de pessoas e de estruturas não dignas de crédito suficiente e não totalmente confiáveis, como as que enunciei. Tão-somente, porque, tudo se encaminha, como já uma vez antevi, para que o primeiro dia da reforma, venha a ser o primeiro dia de uma progressiva caminhada para a “quase indigência”, se cada um for viver exclusivamente da pensão a que irá ter acesso, já não contando com a hipótese de poderem ver goradas, à posteriori, as suas legítimas e naturais expetativas, como anteriormente referi, por via de uma qualquer lei com aplicação retroativa que possa vir a ser aprovada, por este ou por outro qualquer Governo que venha a entrar futuramente em funções, seja ele de que partido político for.

E, também, porque o sistema, encarado na sua globalidade, se não houver uma verdadeira reforma, caminhará inexoravelmente, para algo que se assemelha mais com o modelo latino-americano, ou seja, com um largo número de indigentes, nos quais se incluem alguns dos que vivem do seu salário, um contingente imenso de uma classe média cada vez mais empobrecida e escravizada pela necessidade de recorrer sistematicamente ao pluriemprego para sobreviver, a quem não resta outra alternativa possível, a não ser ter de recorrer a Serviços de Saúde públicos, que estarão, então, degradados e sem capacidade de providenciar uma adequada resposta, assegurados por profissionais quase nas mesmas condições dos seus doentes. E, uma minoria de endinheirados que, ou se tratam no setor privado do próprio país, devotado às elites locais, ou vão ao estrageiro. Não será disto um exemplo paradigmático, constatar que alguns dos “tarefeiros” de que fiz referência, estão na sétima, ou, mesmo, a rondar a oitava década da vida, tendo voltado a fazer urgências, quando delas estavam afastados há muito? Será, então, este o modo pelo o qual se pretende dar dignidade aos últimos anos de vida útil dos médicos, pergunto?

Terão os partidos políticos representados na Assembleia da República, designadamente os que integram o denominado “arco governativo”, a genuína vontade de promover reformas consensuais que permitam evitar este anunciado cataclismo social, ou iremos continuar a caminhar até ao precipício, persistindo em ignorar o trágico final que nos irá aguardar daqui a pouco? Pretenderão ouvir mesmo o ensurdecedor ruído da esperada derrocada final, para então acreditarem que aconteceu mesmo? Ou quererão efetivamente resolver este imenso problema, fundando um novo Sistema de Saúde, no qual o SNS (Serviço Nacional de Saúde) se funda que o outro SNS (Sistema Nacional de Saúde), promovendo verdadeiras sinergias e complementaridades , baseadas num único  seguro público de saúde (complementado ou não por um privado), no qual a nenhum cidadão com qualquer problema de saúde seja vedado o tratamento que necessita, em que a verdadeira inovação terapêutica e tecnológica seja justamente premiada, mas sempre comportável pela riqueza gerada no país, e, no qual, o direito de opção do doente seja respeitado sem necessidade de artificial duplicação de exames auxiliares de diagnóstico.

À Ordem dos Médicos caberá fazer uma regulação eficaz da qualidade da formação dos seus associados, orientada para o respeito pelos princípios éticos e deontológicos, na defesa intransigente do interesse dos doentes, e regulando, aquilo que me parece ser o exagerado pluriemprego, por vezes nada conforme com os valores que aqui defendo.

Uma coisa é certa. Pretender resolver todas as insuficiências referidas, só atirando dinheiro para cima, nada resolverá a prazo. É iminentemente preciso ter determinação e coragem para reformar e reorganizar o sistema na sua globalidade com seriedade. Mas, certamente, sem mais dinheiro investido, é que nada se resolverá, como penso ter demonstrado cabalmente. Por tal, jamais deixarei de partilhar as minhas reflexões e este texto irá integrar o meu próximo livro que se intitulará, algo como “Ascensão e queda de um Sistema de Saúde”, tal como prometi publicamente aquando da derradeira apresentação do último que publiquei e já referido no início deste texto, cerimónia que decorreu em Setúbal. Para que nunca ninguém venha a argumentar com o desconhecimento da realidade. Com a certeza de que estarei “muito bem acompanhado” nessas reflexões.

Setúbal, 2022/07/12