Há alguns dias que ando a tentar perceber o que leva pessoas perfeitamente saudáveis, em idade activa (e portanto fora do target de risco viral) a ficar em casa, ou antes, a ficar “ostensivamente” em casa com a ocupação principal de censurar socialmente os “irresponsáveis” que se recusam fazê-lo.

Sendo eu razoavelmente imune tanto à censura social (estou certo) quanto ao vírus (menos certo), aliado ao facto de que tenho investimentos a proteger, actividade incompatível com o controlo à distância (se o fosse, os investidores não precisavam de mim para nada), fui trabalhar na mesma durante todo este período, ou seja desde o dia zero da quarentena – o longínquo 9 de Março – até agora, resistindo à tortura psicológica a que os marginais como eu são sujeitos.

Primeiro foram os hashtags #ficoemcasa#, depois as molduras nos perfis do FB “Fico em casa”. seguiram-se os anúncios de médicos e enfermeiros que diziam que estavam ali, presumo que num hospital, por mim e eu que ficasse em casa, por eles. Cheguei a ser agredido por um cartaz numa estrada que me dizia “se me está a ler, não devia, fique em casa”. E, por último, sujeitei-me a uma barreira policial, na marginal de Leça, a questionar-me onde ia. As coisas que me ocorreram dizer naquele segundo davam para fazer uma série televisiva. Felizmente apercebi-me a tempo que nenhuma delas terminava bem para mim, de modo que disse a verdade e fi-lo de forma humilde, resignada até, que “só ia à fábrica porque obrigações sociais e fiscais (verdade, não resisti a usar a sagrada password) a isso me impeliam”, evitando com sucesso que os agentes da autoridade percebessem que sou um workaólico em estado avançado.

Decorridos 20 dias, exactamente meia-quarentena, após a comunicação dos meus clientes (indústria automóvel) do seu cancelamento de actividade, a que se seguiu a comunicação dos fornecedores que paravam por falta de matéria-prima (metal), fui forçado a comunicar aos trabalhadores da empresa que entramos em lay-off em Abril, dando-lhes conta do impacto que tal decisão irá ter no seu orçamento familiar.

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A notícia era, de algum modo, esperada por todos, pois várias empresas da zona industrial em causa, assim como outras do mesmo sector de actividade, tinham, dia após dia, feito anúncios semelhantes. Naqueles momentos que se seguiram à explicação das circunstâncias e ao anúncio da decisão, vi um grupo de cerca de 60 pessoas, todos “irresponsáveis” como eu, de olhos no chão a fazer contas à vida, obviamente preocupados com a perda de rendimento.

Esta gente que produz o que todos consumimos e que, mensalmente, paga com os seus impostos o sustento de políticos, governantes e funcionários de Estado, funcionários de empresas públicas e funcionários municipais, é a mesma que aprova entusiasticamente que suas excelências “recuperem direitos e rendimentos”, como as subvenções vitalícias, a semana das 35 horas, a progressão nas carreiras… E é também a mesma que se sente agradecida quando, em momentos críticos, o Estado lhes devolve uma ínfima parte do que lhes tirou.

Mas pede-se mais a estes puxadores de carroça, ou “contribuintes” como alguns os designam. Pede-se-lhes que compreendam que a maioria dos deputados pode ser dispensada sem penalidade salarial; que reconheçam que os empregos públicos são mais úteis do que os seus e por isso não podem ser extintos; que agradeçam os gastos na arte e na cultura, pois eles são para o seu enriquecimento e não, como às vezes parece, um pretexto para os roubar enquanto se riem nas suas caras; pede-se-lhes enfim, que aceitem o imposto como um preço a pagar por viverem numa sociedade civilizada. Claro que seria desejável que, no montante colectado, estivesse incluída uma ética exemplar por parte dos servidores públicos, ou, mais realisticamente, um pouco de vergonha, mas isso não faz parte das prioridades de quem superintende aos destinos do país.

Tudo motivos bons para os verdadeiros contribuintes não ficarem em casa e ousarem manifestar o seu descontentamento. Pode ser que tal venha a ocorrer nas próximas eleições ou quando a pandemia viral estiver resolvida, o que ocorrer primeiro.

Quanto ao meu motivo para não ficar em casa, em meia quarentena, ele foi só um: não queria ver aqueles 60 pares de olhos “irresponsáveis” focados no chão da fábrica — e por isso adiei o momento até ao limite.