Pausa nas notícias, nos excessos mais que previsíveis dos debates entre candidatos presidenciais, na análise das respetivas mensagens e sondagens, na atenção ao crescendo dos números Covid e até nas conversas sobre o frio, agora sob a avalanche torrencial dos vídeos espanhóis que inundaram as redes sociais. Desligo-me também da ressaca dos acontecimentos no Capitólio e ignoro para sempre as bizarrias patológicas e as birras infantilóides de Trump, ainda presidente.

Corto com tudo isto para poder ter um serão calmo e sem sobressaltos. Vou ao concerto dos manos Sobral e não quero que nada nem ninguém me estrague a noite. Reservei bilhetes para a primeira data que estava anunciada, em Dezembro, e esperei pacientemente pelas datas de Janeiro. Fui logo na primeira noite porque adoro a música de ambos e também tenho muitas saudades de programas presenciais, em palcos reais, com público e palmas. Temos todos.

Verificamos logo à entrada do Tivoli que a cultura continua a ser segura, porque entre as pessoas da organização e o staff do teatro, passando pela bilheteira, todos cumprem e fazem cumprir as regras sanitárias. É noite e esperamos ordeiramente na rua pela nossa vez de entrar. Sobrevivemos ao frio granítico porque queremos estar à altura do momento. No duplo sentido, quero dizer: o momento do espetáculo e o momento atual, apesar de já estarmos outra vez em vésperas de confinamento.

Atrevo-me a abrir um parêntesis para um desabafo: se fosse por nós, os que não vivemos sem músicos, sem atores, sem artistas, sem cinema, sem teatro, sem concertos, sem exposições e sem espetáculos, tenho a certeza de que não chegaríamos a ter que confinar porque cumprimos escrupulosamente as regras só para não perdermos o privilégio de ver arte, ou de nos sentarmos numa plateia para vermos em ecrã gigante, ou assistirmos ao vivo, às formas de cultura que mais nos entusiasmam.

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E mantenho o parêntesis aberto para referir que, até aqui, não tive notícia de surtos Covid em três lugares de “culto”: museus, salas de espetáculos e igrejas. Curiosamente, são locais que frequento regularmente e onde me senti extraordinariamente segura ao longo deste ano de pandemia, por constatar que a esmagadora maioria das pessoas cumpre, redobrando os cuidados com a desinfeção e os protocolos sanitários. E agora sim, fecho o parêntesis para voltar a sentar-me na plateia do Tivoli.

Os manos Sobral surgem em palco vestidos de preto, de jeans e ténis usados, os dois com camisolas iguais onde se podem ler inscrições diferentes: “irmão da Luísa”, “irmã do Salvador”. Quem é assíduo nas redes sociais e fã das suas músicas sabe do que falo, porque certamente já os viu neste propósito. Faz parte da estratégia de marketing, mas é eficaz por ser autêntico. Cada um assume a cumplicidade com que vive o estrelato do outro. Na verdade, todos já nos referimos a eles da mesma forma, quando os tratamos pelo nome próprio e queremos ter a certeza de que sabem de quem estamos a falar.

O cenário e as luzes para o concerto foram estrategicamente depurados para recriar a intimidade familiar e sobre o palco colocaram apenas um piano, duas cadeiras, um par de guitarras, uma tarola e os devidos microfones. Mais nada.

Luísa e Salvador entram ao som da gravação das suas próprias vozes, quando ainda eram crianças, e começam a cantar de pé, à capella, uma música inesperada que muitos jovens sabem de cor porque a cantam em coros de igreja, em campos de férias, em missões dentro e fora do país: “Vasos de Barro”. Foi esta a música que abriu o concerto, porque a cantavam no coro dos Salesianos, nas missas de domingo.

A ideia deste concerto era fazermos uma viagem conjunta, eles e nós, pelas músicas que marcaram as diversas fases da vida. Através das suas memórias, despertámos as nossas próprias recordações e foi surpreendente perceber isso à medida em que os íamos ouvindo. Enquanto eles cantavam e tocavam as suas músicas, dentro de nós ecoavam também as nossas.

Entre músicas e graças com piada, Luísa e Salvador contaram histórias, partilharam episódios vividos em casa, nas férias e no carro, quando faziam viagens longas em família. Intercalaram a conversa com músicas desses tempos e fizeram questão de falar das canções que ouviam no carro da mãe e do pai, pois tinham gostos distintos e igualmente vincados. Dos carros passaram para os quartos de cada um e as luzes de palco ajudaram a separar os espaços e até os tempos de cada um.

Muito antes de serem conhecidos como irmãos, já ambos eram grandes músicos. Luísa percebeu a sua vocação muito cedo, fez o 12º ano em Buffalo, nos EUA, e depois estudou numa das melhores universidades do mundo, a Berklee College of Music, em Boston. Seguiu para Nova Iorque, de onde voltou para fazer uma carreira fulgurante. Há anos que tem uma legião de fãs que a seguem religiosamente.

Salvador, dois anos mais novo que Luísa, também fez o 12º ano nos EUA, em San Diego, e gostava de ter ficado nos States a estudar Psicologia, mas acabou por vir parar ao ISPA. Como se interessava por Psicologia no Desporto, foi aconselhado a ir para Palma de Maiorca, onde havia grandes especialistas na matéria, e foi em Palma que começou a cantar em bares. Foi também ali que descobriu que queria cantar. Desistiu da Psicologia e mudou-se para Barcelona, onde percebeu que tinha um coração demasiado grande. No sentido literal e metafórico.

Ouvir estes dois irmãos cantar pode não ser novidade para ninguém depois de terem vencido o Festival da Canção, mas a sua lendária afinação aplicada a incontáveis músicas de épocas tão diferentes, cantadas e tocadas num palco tranquilo, intimista, sem luzes histriónicas nem apresentadores-vedetas, resultou num concerto-maravilha.

O Tivoli esgotou nas duas noites, no fim, a casa veio abaixo com as palmas, todos a aplaudir de pé, e o sucesso foi de tal forma estrondoso, que prometeram dar um concerto extra, seguramente depois de ter passado o novo confinamento.

O mais genial nos manos Sobral é a voz de cada um, claro. Fazem tudo o que querem com as vozes que têm porque a sua afinação é sempre mais que perfeita e ficamos com a certeza de que todas as fibras de que são feitos são musicais. Impressiona muito ouvi-los cantar, improvisar e tocar com e sem instrumentos. Mais do que encher grandes salas com a sua música, os manos Sobral iluminam as sombras do mundo quando cantam.