Num regime Democrático, cada um de nós é, simultaneamente, súbdito dos seus súbditos e soberano dos seus soberanos. Isto porque, os vários membros de uma sociedade Democrática surgem integrados num todo comum, mas sem deixarem de alienar algo de seu a favor do coletivo a que pertencem. Acresce a isto a circunstância de as cláusulas deste acordo terem uma aplicação que é feita por igual a todos os seus membros o que nos garante que aquilo de que abdicamos é equivalente ao que recebemos e que por consequência a união estabelecida é a mais perfeita possível sem sacrificar com isso o valor da diversidade.

Ao longo do último meio século o país consolidou o seu regime Democrático, sendo que a dimensão desta obra ocupa já um lugar naquilo que a poetisa Sophia de Mello Breyner denominou de “substância do tempo”. A atual democracia portuguesa está inserida num projecto de emancipação que remonta à revolução vintista de 1820, mas que permaneceu dormente durante o período da ditadura. Assim sendo, ao partirmos desta narração histórica constata-se que o regime vigente pode ser homenageado reafirmando o ideário comum aos vários pronúncios de liberdade dos quais a atual democracia é herdeira, desde logo em decorrência das reflexões sobre o princípio fundador da sociedade civil que acolheu no seu âmago.

Ao recuarmos na cronologia composta pelas várias associações de menor dimensão que antecederam o arranjo entre o sujeito e o corpo comum ao qual este mesmo sujeito passou a pertencer ser-nos-á possível extrair argumentos que reforçam a ideia de um agregado fundado num princípio voluntarista. De facto, caso existisse uma autoridade natural ou divina de uma pessoa ou de um grupo de pessoas face aos restantes membros da sociedade esta mesma autoridade ter-se-ia manifestado na formação das primeiras associações que despontaram, mas tal como é sabido isso não sucedeu. Quer isto dizer que é necessário para a formação de um Estado que exista uma vontade comum e que cada um considere que fica melhor numa situação em que o contrato social foi firmado. Por esta razão, a Democracia rejeita a ideia de um direito do mais forte cujos postulados renegam o voluntarismo a favor da coerção, e que mediante o apelo à arbitrariedade impossibilitam a formulação de padrões universais. Ora, agir à revelia deste ideário obrigar-nos-ia, necessariamente, a substituir a nossa sociedade civil por um estado de guerra mascarado de civilidade e pressuporia um ato de usurpação.

Importa, igualmente, sublinhar que o contrato social no qual uma parte importante da teoria política radicou a Democracia não concebe a hipótese de um abdicar pleno da nossa liberdade com o propósito de enquadrar em absoluto a nossa conduta nas várias circunstâncias em que atuamos enquanto súbditos. Com efeito, quem alienasse completamente a sua liberdade deixaria de poder fiscalizar a parte a favor da qual esta liberdade foi abdicada naquilo que respeita ao cumprimento das suas obrigações o que geraria um ascendente caracterizado pela adoção de comportamentos prepotentes. Mais ainda, o uso que fosse atribuído à nossa antiga liberdade poderia causar-nos sérios inconvenientes e que seriam em tudo distintos das situações que ocorrem nos contratos que visam dispor de algo que pode, posteriormente, ser utilizado de modo descuidado ou até destrutivo sem quaisquer prejuízos para o seu titular inicial. Assim sendo, é necessário que cada indivíduo mantenha um espaço de autonomia que o impeça de ser reduzido a um mero meio para alcançar os fins estabelecidos por outros.

O corpo comum que surgiu através do contrato social foi precedido de uma situação de conflito baseada na competição entre as várias vontades particulares. Por esta razão, o propósito de ultrapassar este estado de guerra obriga-nos a apelar a uma vontade geral definida enquanto aquilo que as várias vontades particulares têm em comum. Ora, esta vontade geral é um conceito qualitativo e não um conceito quantitativo, tal como já explicava o Democrata, António Sérgio. Por sua vez, ao apelar a conceitos qualitativos a soberania que existe na Democracia não deve ser entendida como uma soberania da multidão, mas como uma soberania do povo. Assim sendo, é necessário reconhecer a existência de direitos dos quais nenhuma maioria contingente deve poder dispor, sendo necessário que existam limites ao poder revogatório do legislador ordinário, assim como, instituições contra maioritárias, tais como os tribunais. De resto, esta vontade geral engloba em si mesma o maior número de modos de vida passíveis de serem enquadrados nas normas da sociedade civil, mas sem impor um modelo único.

A doutrina a que fiz referência não é a única a defender a democracia, mas é uma das mais estabelecidas. Ao acompanhar a história da teoria política ficamos mais capacitados para acompanhar a história da democracia e para a saber defender. Esta aprendizagem deixa-nos reforçados na alegria da celebração deste meio século e tornamo-nos mais dispostos a batalhar para assegurar que a democracia permanece como sendo o nosso regime para sempre.

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