Seis de novembro de 2021, sábado, foi um dia estranho. Celebrava com dois amigos meus o vigésimo terceiro aniversário de um deles, ao mesmo tempo que agonizava interiormente com a morte do meu cão Luca, um (fantástico) animal de companhia que esteve comigo durante 14 anos e que, sem uma pata traseira, tinha, ainda assim, uma tremenda vontade de viver. Que ele agora esteja em paz e alegria, a conviver com outros cães e animais, num mesmo terreno abençoado que todos desejamos encontrar após os tormentos da vida material. Sê eternamente feliz, Luca!

Enquanto comemorávamos os anos daquele meu amigo e passeávamos, encetámos, em plena noite na cidade, uma reflexão sobre a vida – o seu propósito (?), o seu sentido (?). Quais as motivações para aqui andarmos, será que a humanidade alcançará uma igualdade/liberdade/paz plena, quão frustrante poderá ser um vazio por se ter alcançado tudo ou por não se poder chegar a um objetivo de completude foram algumas interrogações que levantámos e que, construtivamente, discutimos, convictos de que não existem respostas verdadeiras ou definitivas para as mesmas, antes, no limite, convicções pujantes que naquele período partilhámos.

O que interliga a morte de um companheiro meu com a conversa sobre as dúvidas existenciais da vida? Bem, ao pensar nisto, diria que o elo é a incerteza. Existe um conjunto de incertezas com as quais vivemos desde que assumimos estar na posse da consciência dos fenómenos – designadamente, a incerteza sobre o timing do falecimento de um ente querido ou sobre o significado dos nossos projetos individuais e coletivos e a possibilidade de os aplicar. Outras intensificam-se com o mundo altamente complexo em que hoje vivemos, as quais têm sido estudadas por sociólogos como Zygmunt Bauman, Anthony Giddens ou Ulrich Beck.

O conceito de incerteza é, ele próprio, indicador dos tempos contemporâneos: como defendia Giddens, nos contextos sociais anteriores aos que emergiram no paradigma da modernidade, a ideia de incerteza não existia porque todas as coisas eram regidas por forças sobrenaturais, como a divina, e organizadas em hierarquias em que a mobilidade se tornava um processo, na prática, impossível. Contudo, hodiernamente, falarmos sobre risco, imprevisibilidade ou crise é encontrarmos em todas estas noções um potencial de incerteza que advém sobretudo das mudanças tecnológicas, ambientais, económicas e políticas a que temos assistido.

Conseguimos encontrar cenários de impasse ou de indefinição nos quais paira a sombra do incerto e da não-clarificação. Isto porque viver é ter em atenção o quanto se confrontam os valores da liberdade individual e da igualdade de direitos. Não é por acaso que esta é uma das principais diferenças – se não a primordial – que separam as ideologias. Enquanto seres humanos, apreciamos verdadeiramente as nossas singularidades e originalidades como veículo da nossa assunção pessoal, do nosso «eu também existo e estou aqui», mas elas deixam de subsistir quando admitimos versões radicalmente comunistas da distribuição dos rendimentos e das oportunidades; por outro lado, valorizarmos a emancipação do eu em detrimento da luta pela atenuação das pobrezas e das discriminações reforça um capitalismo reles em que ser especial é festejar a injustiça de outrem. A vida constrói-se no confronto entre estas visões, exigindo de nós uma flexibilidade para ajudar e ajudar-se, para reivindicar direitos universais enquanto se proclama a legitimidade das individualidades.

Este texto foi pensado para o debate acerca de tudo um pouco. Encontra-se na interseção entre múltiplas e inesgotáveis reflexões (filosóficas, sociológicas, educativas…). Começa pela dignificação da vida animal para prolongar tal enobrecimento à vida humana, conectando-as. E intenta fazer da consciência filosófica uma veia dos esquemas sociais que produzimos, reproduzimos e empregamos. Desejo a quem o lê que consiga visualizar uma ponte entre a perda e a riqueza onde se caminha para sofrer, curar e revitalizar continuamente.

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