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No monólogo inicial do filme de Woody Allen, Match Point, é referido que “o homem que disse que preferia ser sortudo a ser bom, viu a vida com muita profundidade”, remetendo para a pertinência de reflectir no quanto está fora do nosso próprio controlo. A analogia seria feita com o momento em que uma bola de ténis bate no topo da rede, e pode tombar para qualquer um dos lados, dependendo apenas da sorte. Curioso por descobrir a que homem se refere a primeira citação, encontrei-a pertencente a um antigo jogador de basebol norte-americano, da década de 30, Lefty Gomez. A frase está repleta de profundidade, e abre as portas à reflexão, mas diria que no mundo da competição terá um sentido diferente dos restantes momentos da vida. Em competição será uma sorte insuficiente, já que dificilmente alguém terá sucesso apenas confiando na sorte, sem os outros requisitos do trabalho e da qualidade. A lenda do xadrez, Garry Kasparov viria a referir isso mesmo no seu livro Deep Thinking. Considero que no desporto pesará a sorte de ter talento, e a sorte de ter a mentalidade para trabalhar esse talento.
Mas há momentos que, por força da sua natureza, estão dependentes quase apenas da sorte. No filme Nightcrawler, o personagem principal tem como lema “se queres ganhar a lotaria, tens que fazer dinheiro para comprar o bilhete”. Mas esse é apenas o esforço para se ficar habilitado a que lhe saia a sorte, e não terá influência no resultado. Será sorte ganhar o primeiro prémio de uma lotaria, pois não se poderá dizer que uma pessoa se esforçou muito e tem qualidade para ser um bom comprador de cautelas. Apenas que deu o primeiro passo.
Este mesmo texto, escrevo-o esforçando e tentando aperfeiçoar a forma como abordo o tema, mesmo que tenha o azar de ser partilhado num dia em que um grande acontecimento rouba as atenções, ou, pior, num dia em que há um qualquer problema informático que impede a sua partilha.
Ironia dos destinos, uma pesquisa mais aprofundada levou-me a descobrir que Lefty Gomez era conhecido como um jogador carismático, pelo seu bom humor e propensão a bom storytelling. Para efeitos desta ideia, concluo que os comediantes (ou as pessoas com propensões ao humor) reflectiram muito sobre o instituto da sorte.
Nem precisamos de ir muito longe. Vimos no início deste texto, que Woody Allen colocou em Match Point a premissa da importância da sorte. Tal como Groucho Marx, 42 anos antes, havia dedicado um capítulo do seu Memórias de um Pinga-Amor ao tema da sorte. Diria ele que não existiria alguém que pudesse triunfar sem o gás da sorte, por muito talento e qualidade que tivesse. Ironicamente, Groucho Marx teve o azar de morrer na mesma altura que Elvis Presley, o que virou todas as atenções mediáticas e necrológicas para o cantor. Ou, como referiu ainda num outro cenário outro comediante, Demetri Martin: “A pior altura para se ter um ataque cardíaco é durante um jogo de charadas… especialmente se os teus colegas forem maus a adivinhar.”
Aproveito para fazer um pequeno aparte para colocar algum sentido no que estou a invocar. Referi atrás, sobre a ligação dos comediantes à sorte, que não precisávamos de ir muito longe, uma vez que Woody Allen é há muito tempo considerado o herdeiro de Groucho Marx, ilação que considero muito, mas mesmo muito discutível. Aliás, alguns críticos indicam dezenas de possíveis herdeiros, numa lista que inclui Lenny Bruce, Larry David, George Carlin, entre outros nomes históricos de variadas décadas do humor. Mas há pelo menos um nome que eu gostaria de incluir como possível herdeiro de Groucho Marx, por várias razões, sendo a principal o facto de eu lhe conferir uma genialidade e uma profundidade reflexiva incomum. Falo de Norm Macdonald. O malogrado comediante lançou em 2016 o seu livro de memórias onde, pelo meio dos seus geniais capítulos cuja veracidade é sobretudo dúbia, consigo concluir que é, principalmente, um livro sobre a sorte. Desde o seu vício no jogo, à sorte que considerou ter por ter sido abençoado pela possibilidade de viver da comédia, e a capítulos com nomes como “Winning Big” ou “Flipping Coins” reflectiria no introspectivo “The Final Chapter”, ao comparar um jogo de dados e a vida, com a necessidade de, já que aqui estamos, arriscar. Terminaria o capítulo com a frase “I’ve been lucky”.
Insisti nestas referências ao humor, pelo facto de considerar que quase todos os episódios da nossa vida, frutos principalmente do acaso, são passíveis de nos fazer rir. Apenas temos de esperar o tempo suficiente, sendo isto variável conforme cada um analisa a escassez do seu tempo.
2 Mas deixemos de parte as referências a opiniões eruditas, que muitas vezes servem apenas para dar a entender que a pessoa é sabida sobre algo, e vamos reflectir despretensiosamente.
No fundo, a existência é como escolher uma fila de supermercado apenas para constatar que poderá vir a ser a mais lenta de todas, quase sempre por motivos de tolice humana. Incluindo a nossa própria. E, claro, porque a sorte e o acaso têm o seu papel. Seja porque o dedo de um cliente escorregou ao carregar no código do seu cartão multibanco; por alguma moeda que saltou de uma mão para um lugar recôndito do chão, onde quem não tenha unhas se vê à rasca para a apanhar; ou porque alguém não colocou no sítio o separador de cliente, e quem trabalha na caixa acabou por passar produtos alheios ao pagante do momento, tendo de mexer na maquineta para recuar nos produtos seleccionados. E tudo isto torna-nos interligados pelos comportamentos dos outros, e do acaso. Se for sem qualquer outra possibilidade, odiarei para sempre qualquer fila em que tenha de estar. Mas o mundo acaba por ser mais do que o exacto momento em que estou na fila. O mundo vai ser também todas as variantes concretizadas no que acontece depois. Quem sabe não tenha sido aquela moeda a salvar-me de passar debaixo de uma varanda no momento exacto em que um piano está em queda livre? E porque estaria o piano em queda livre? Lá está. Por motivos de outro acaso qualquer.
Na tranquila cidade do interior, a qual tenho o prazer de ser a minha terra-natal, havia um conhecido cauteleiro, que andava pelas ruas emitindo gritos estridentes para que comprassem as suas cautelas. Tinha um chapéu de cauteleiro, com estrelas à volta, identificando a quantidade de vezes que a sorte grande tinha saído em cautelas vendidas por si, e entrava em todos os estabelecimentos para vender o potencial jackpot. Para efeitos de protecção de identidade, salvaguardo que posso apenas revelar que o apelido do senhor começava por “S” e acabava em “ilva”. Certo dia, meu pai celebrava ter ganho cerca de 600 euros numa lotaria, com uma cautela vendida pelo senhor S. Situação normal, quantia não muito especial, e a vida do meu pai seguia dentro do padrão habitual. Até que, nessa semana, foram-se acumulando as pessoas conhecidas do meu pai que se dirigiram ao seu gabinete, no centro da cidade, congratulando-o pela sorte grande, com frases como “Ainda bem que foi para si!”; “Você merece!”; ou “Felizmente calhou a uma boa pessoa.”. Meu pai estava confuso, e, inquirindo um desses indivíduos de quanto dinheiro achava que tinha sido o prémio, percebeu que circulava o rumor pela cidade que o prémio não seria na casa das centenas, mas sim nas centenas de milhares. 600 mil euros. “Oh, então foi o S. que andou aí a dizer isso, anda toda a gente a achar que ganhou o primeiro prémio!”. Grave por vários motivos, desde logo porque, se fosse aquela quantia, para efeitos de protecção de identidade, S. não salvaguardara o nome do meu pai como deve ser. Sorte dos diabos, que S. entrou no gabinete do meu pai enquanto um dos infectados pelo rumor lá estava. Foi perdoado. Pelo menos, guardam-se bem aconchegados os elogios e a simpatia de quem foi felicitar o meu pai. Foi o mais perto de um “living funeral” que se pôde assistir.
3 Na aclamada série The Office (US), o personagem Michael Scott diz, a dada altura, a frase “I’m not superstitious, but I am a little stitious”. Aqui me confesso como descrente de superstições. Acredito mesmo que não haja nenhum ritual que possa alterar um resultado ou o desenvolvimento de um qualquer evento. No entanto, percebo que esses rituais possam tornar a pessoa mais confiante nos seus próprios meios. Daí que respeite que, por exemplo, jogadores de futebol entrem com o pé direito em campo, se benzam depois de tocar a relva, ou se ajoelhem antes dos jogos, de braços abertos a pedir uma bênção. Respeito isso, mas não acho que o desfecho da partida seja influenciado por essa bênção, até porque é pedida por jogadores das duas equipas. A única superstição que tenho, fruto do protocolo de quem viveu quase 18 anos sob a alçada da minha mãe, é nunca deixar chapéus em cima de camas. E nunca vou perceber o porquê de ser uma regra materna, nem o porquê de eu o continuar a fazer. Talvez o maior medo seja o de um dia, de facto, ter um mau acaso, apenas para chegar a casa e encontrar uma boina no edredom, e acreditar mesmo que foi produto do meu descuido.
Em matéria de superstição, lembro-me muitas vezes das famosas e datadas pulseiras do equilíbrio, um excelente produto de marketing, que toda a gente usava na escola porque conhecia alguém que dizia “juro que nunca mais tropecei com isto” ou “sinto mesmo a diferença no equilíbrio”. Mais uma vez, e pondo de parte, para já, a matéria dos milagres, a superstição existe para nos deixar confiantes.
No entanto, vem-me à memória uma lenda de uma fonte numa aldeia da minha terra, cuja água não só teria efeitos terapêuticos, como, se a bebêssemos e subíssemos a grande escadaria sem voltar a olhar para a fonte, os nossos desejos concretizar-se-iam. Lembro-me de alguém próximo a quem foi poupada uma cirurgia ao pé por banhar o calcanhar naquela água. Para isso não encontro explicação, e por isso reafirmo que respeito rituais e superstições, apesar de não os ter. Escolho não acreditar, até porque ser crente dá trabalho. Até porque não me recordo de nenhum dos meus desejos, mas sinto que não se concretizaram. A não ser o desejo de matar a sede depois de descer tanto degrau. Aquela água era mesmo fresca.
4 Tive uma vizinha vidente. Era esta mesmo a profissão dela, e tinha o seu portão sempre com filas de pessoas que queriam saber a sua sina. Muitas vezes, por azar, tocavam à minha campainha a perguntar se era ali. Pelos vistos, há muitas formas de ganhar a vida com a sorte. Na verdade, nunca obtive efectiva evidência da vidência da vidente. Que instituto divino teria dado a profissionalização das profecias àquela senhora? Porquê a ela e não a mim, ou a outra pessoa qualquer, como o caso do Profeta Extraterrestre de Arganil? Poderia ser que as profecias fossem apenas coincidências?
E eu adoro coincidências. Delas tiro, inicialmente, uma ideia contraditória ao que tenho tentado fazer neste texto. Quando sou alvo de uma coincidência começo sempre por achar que as coisas acontecem por uma razão. Mas percebo que não se sucedem por uma razão de destino, mas pela razão de que as coincidências estão sempre a acontecer, só que apenas as notamos às vezes, o que as faz aparentar serem mais especiais e irónicas do que o que são. É uma coincidência que a rede social Facebook tenha aparecido no mesmo ano em que faleceu Henrique Mendes, apresentador do mítico programa “Ponto de Encontro”. Não é irónico, dado que o problema do desconhecimento do paradeiro de amigos e familiares que esse programa visava resolver, veio a ser solucionado pela rede social?
Reparemos nesta outra curiosidade coincidente. O patrocínio de casas de apostas e casinos online a equipas de futebol proliferou. Imenso. Fará sentido que um casino patrocine uma equipa que acaba de descer de divisão por falta de qualidade, mas também por muitos acontecimentos de falta de… sorte? Não é… irónico? Sei que a sorte, as coincidências, e as curiosidades são engraçadas. Óbvio que trarão igualmente dissabores. Resolvo os problemas dos dissabores através da ironia do acaso. Tenho esse mecanismo de defesa. Enquanto não tiver superstições, rituais, credos, ou algo mais que me faça acreditar num sentido que ofusque a ideia de que andamos à sorte.
A título de exemplo, será uma sorte que alguém tenha percebido antes de ler esta frase, que as iniciais das últimas frases do parágrafo anterior formam a palavra “Sorte”. Caso não o tivesse referido, poderia dar-se o acaso de ninguém ver um exercício para o qual me esforcei. Acredito que seria um azar. Sobretudo porque fiz agora o mesmo neste parágrafo. Onde tive como meta fazer com as iniciais de cada frase a palavra “Acaso”.
Da minha parte, foi ao tentar fugir da inevitabilidade de não chegar a conclusão nenhuma quando pensava sobre a existência, que me conduzi a arranjar distracções.
Mas não queria distracções estéreis. Procurei sentidos, mais na filosofia do que na religião. Procurei ter visões sobre o mundo antes de saber que já existiam. Compreendi o estoicismo, o niilismo, e até o solipsismo, bem antes de saber que já tinham nome. Tudo para não me distrair sem rumo, mas tentar perceber o que tudo isto significa antes de estar viciado pelas ideias dos outros.
Na procura do sentido, considero uma sorte se estivermos certos nas nossas individuais crenças ou descrenças, na nossa fé ou cepticismo, nas nossas superstições pessoais ou visões filosóficas. Se depois disto não houver mais nada, é porque foi mesmo tudo fruto da sorte e do acaso. Morreremos no instante anterior a descobri-lo.