1 Ver para descrer. A encenação, os convidados, as perguntas artificalmente contudentes, os temas pré combinados, a plateia quase, quase toda escolhida a dedo, o tom, as palmas. E os ausentes, desde logo a Ordem dos Médicos (porque não estava?) e os proscritos (a Ordem dos Enfermeiros aflige assim tanto o Governo?). No meio, sorrindo, sorrindo muito com a confortável segurança que lhe advinha de estar a jogar em casa com o resultado previamente decidido na secretaria da RTP, a ministra da Saúde, faltando à verdade com o invejável à vontade de saber que ninguém ali a desmentiria. Foi o último “Prós e Contras” (Prós e quê?). Não fora a inverosimilhança de tudo e a encenação teria sido um insulto aos portugueses sem voz nem vez na Saúde (e aos outros, pensando bem). E não, não desdenho do Serviço Nacional de Saúde – pelo contrário já aqui o elogiei sonantemente há poucos meses atrás, salvou só e mais nada o coração de um dos “meus”. Mas espanto-me sempre com a desenvoltura ágil com que o Governo nunca hesita em “usar” os portugueses para fazer deles parvos. E de caminho, demissionários. E também de caminho, ocupando todos os meios que aparentemente a isso se dispõem.

O país testemunhou-o esta semana.

2 Como Deus não dorme, poucas horas antes desta televisionada pequena comédia de costumes, houve um parto muito especial. Nascia um livro que celebra e consubstancia o contrário do que acima expus, no modo decente, sério, crítico, como não disfarça nem falseia a abordagem de um tema delicadíssimo na Saúde: a relação médico-doente.

Chama-se justamente “A Relação Médico-Doente” e é um cuidadíssimo e lindíssimo “tratado” (By the Book). Começou a ser pensado há três anos , nasceu de uma ideia do actual bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães (daí o subtítulo da obra “Um contributo” da Ordem dos Médicos) e trata da indispensabilidade de reflectir e reavivar a crucial importância dessa relação, como condição para uma boa Saúde. Foi este, aliás, um dos “objectivos centrais” que Miguel Guimarães colocou no seu programa de candidatura à Ordem. Esta semana ficou cumprido numa obra onde tema tão vital e central tem a felicidade de ser não só abordado com rara profundidade, como de diversas e muito enriquecedoras perspectivas. (Entre elas a de João Lobo Antunes com alguns textos tão notáveis que no-lo devolvem hoje, alguns anos após a sua partida, luminosamente inteiro, intacto e insubstituível.)

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Não era fácil apresentar este livro. Sucede que o complexo desafio teve desafiado à altura: naquele silêncio das grandes ocasiões, a plateia que lotava o auditório da Torre do Tombo, ouviu António Barreto, deixar ali, em inspirado escrito, a melhor das garantias: a obra ficará como referência para a história da nossa medicina. (“A sessão ficaria incompleta sem a intervenção do António Barreto” havia de me dizer a seguir o próprio Bastonário.) Mas o que também fica – e perdurará impressivamente – é o exemplo. O revelador exemplo do que pode ser – e fazer – uma actuante e desinstalada sociedade civil e do lugar que ela tem nas sociedades modernas.

A nossa, semi adormecida e demasiado instalada, está a confundir-se com uma massa de gente amorfa e muda. Apesar de cada vez mais raras, há excepções que salvam a funesta regra.

Este livro é uma delas.

3 A relação médico-doente está hoje ela própria muito doente. Antes que se transfigure num corpo ferido de morte, os muitos autores deste livro (médicos, filósofos, advogados, cidadãos de outras áreas, escolhidos por uma Comissão Editorial, liderada por José Poças que também coordenou o volume ) desejariam curá-la. Separando o trigo do joio, ou seja distinguindo entre a normal evolução tecnológica e informática e os seus excessos, traduzidos por exemplo no uso e abuso do computador (habituámo-nos a eles para respirar e eles sabem…).

Estudos recentes norte americanos provaram que “aquilo que é hoje o espaço vital entre o médico e o seu doente está reduzido a 15%  20% no máximo” e que o resto “pode ser um écran, um agrafador, um monte de papéis…”, explica Miguel Guimarães. E depois há a maior ameaça, de índole politica esta, que é o factor “tempo”. A confiança do doente no médico reclama tempo para expor dúvidas, ser ouvido e olhado, conversar, desabafar mas o tempo é precioso, custa dinheiro. Prova: no nosso Serviço Nacional de Saúde – como ocorre aliás noutros países como a Espanha por exemplo – “há uma pressão exagerada” para a produção de números de consultas, cirurgias, exames – “esses números que os governos gostam apresentar ao público” – de onde resulta encavalitar o dobro, triplo ou quádruplo de consultas num espaço de tempo onde racionalmente caberia muitíssimo menos. Reduzindo o diálogo médico-doente a “uma duração inaceitável de cinco, sete minutos”, quebrando o elo fundamental da confiança que deve existir entre ambos e gerando ainda probabilidades de erro por parte de um clinico pressionado a agir mais depressa.

Não disse o Papa Francisco há tempos – lembra o Bastonário –, a propósito das relações humanas em geral, que “o último reduto das relações humanas se verifica nas Misericórdias e nos Hospitais, locais onde a fragilidade é sempre maior e a ajuda ainda mais necessária”?

Outros obstáculos e impedimentos haverá obviamente numa relação que se quer securizante, confiante e produtiva e o está cada vez menos. Da absoluta necessidade de a revalorizar nos fala superlativamente este livro, louve-se o facto. A Saúde, os médicos, os doentes, o publico e o privado, o país, todos ganham. Não é pouco.

4 Não é pouco mas talvez seja preciso mais nesta caminhada pelo reacender da “relação médico-doente” terá pensado a Ordem dos Médicos, após saber há três, quatro anos, que a Espanha iria apresentar a candidatura da “relação médico-doente” a Património Imaterial da Humanidade da Unesco.

E António Barreto talvez também tenha pensado o mesmo. Ouçamo-lo, na segunda feira, 25 Novembro, na Torre do Tombo:

“Por que diabo a relação entre o médico e o doente deve ou pode ser considerada «património imaterial da humanidade»? O que há de diferente entre esta relação e tantas outras? (…) Comparei com outras, tantas, de carácter profissional e funcional. Nada encontrei que se parecesse com esta. É antiga, a mais antiga. Compendiada. Tratada. Analisada. Com tradição. Sempre em mudança, sempre renovada, mas permanente. Com abordagens de toda a espécie, filosófica, moral, estética, religiosa, política, científica… Por isso tem o mais antigo juramento deontológico, a mais antiga profissão de fé. Por isso o médico é o profissional mais respeitado, mais venerado e mais temido.

Creio que há motivos suficientes para que esta relação tenha sentido próprio e diferente, tenha existência especial e como tal seja recordada e respeitada. (…)”

5 A Espanha avançou com a ideia de uma candidatura à Unesco, os seus Governos têm-lhe dado luz verde, a coisa caminha. Entre nós tem sido “imenso o empenho”, vindo de diversos sectores da sociedade civil, mas o Portugal “oficial” – à excepção de Adalberto Campos Fernandes que enquanto ministro deu “todo o apoio ” – tem hesitado entre o mutismo e o torcer o nariz.

“Não estamos a encontrar grande abertura, bem pelo contrário. Parecem achar que isto não tem interesse nenhum… A Ordem dos Médicos convidou aliás a titular da Saúde para integrar o painel dos autores da “Relação Médico-Doente” mas a carta enviada nunca até hoje obteve resposta.”

Tempos difíceis. E como a verdade é que são os países e só eles que propõem as candidaturas à Unesco será interessante observar que desfecho espera das “autoridades” políticas e do Estado português esta singularíssima iniciativa.