Manuel Pinho continua em casa, com farto aplauso. Como a generalidade das pessoas, tal como eu, acha que o homem é um artista que navegava nas águas do tráfico de influências, os senhores juízes entenderam, com raciocínio jurídico impecável, que continua preso – a menos que pague a módica quantia de 10 milhões de Euros, caso em que poderia livremente passear a sua pesporrente pessoa e inclusive dar à sola. Este último facto – o pôr-se ao fresco, como fez o antigo Presidente do Banco Privado, é que constitui, parece, o risco invocado por Carlos Alexandre, o conhecido carcereiro contumaz, para o confinar às paredes da sua moradia, que imagino luxuosa.
Para comentar decisões judiciais é em geral recomendável lê-las e não confiar excessivamente nos resumos que delas fazem jornalistas, com frequência analfabetos, a quem escapam subtilezas dos textos, de mais a mais redigidos no juridiquês hermético que a magistratura tende a achar que sublinha a majestade da Justiça e a complexidade das decisões.
Poupo-me desta vez a esse trabalho porque a notícia me parece escorreita e o problema ser um de direitos humanos e do tipo de sociedade em que pessoas esclarecidas querem viver, antes e acima da mera subsunção dos factos a leis que se interpretam com descaso de princípios civilizacionais sãos.
Vejamos:
- Pinho está preso desde Dezembro do ano passado por decisão de Carlos Alexandre, o mesmo que prendeu Sócrates em Évora por espaço de uns dez meses a começar em fins de 2014, mais algum tempo em casa, por causa dos graves indícios dos crimes que cometeu. Os choferes de táxi, com pedido de perdão a esta respeitável corporação, rejubilam: lá julgamento não há ao cabo de mais de sete anos, mas aquele aninho no chilindró já ninguém lhe tira;
- O advogado de Pinho “meteu” um habeas corpus, conceito ao qual a Constituição se refere assim (art.º 31º): Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
Repare-se, para memória futura: “abuso de poder”. Depois o Código de Processo Penal vem, nos art.ºs 220º a 222º, regular o exercício do direito, de forma a tal ponto constrangedora que o STJ raramente, parece, dá provimento a pedidos, e isto porque, desde que quem mandou prender tivesse competência para o fazer e a prisão (para a simples detenção, se bem entendo, o STJ não é chamado, a coisa resolve-se degraus abaixo) não seja em si ilegal o tribunal não quer saber de mais nada: A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis.
Não andei a estudar resmas de pareceres sobre este assunto. Porém, no que li não vi nenhum rasto da ideia luminosa, que me parece ser esquecida com excessiva facilidade e frequência, de que não é a Constituição que deve ser lida segundo a interpretação que dela faz o legislador ordinário, é este que tem de se conformar com aquela quando, como me parece o caso, a ofende. Sabe Deus que a Constituição, malnascida porque enviesada pelos donos da Revolução, contém normas a mais que só a preguiça, o pendor esquerdista do regime e a relação de forças partidária ainda não demoliram, conformadoras de escolhas que não têm dignidade constitucional, como é o caso de boa parte dos chamados direitos económicos. Mas esse não é o caso da liberdade de ir e vir, que é um direito humano – a Constituição, nisso, não precisa de ser revista nem, se o for para o efeito de abundar nos limites ao exercício de tais direitos, se poderá dizer que evoluiu, antes que regrediu.
Que faz o STJ ao abuso de poder? Nada, não faz nada: contando com a interpretação do conceito estritamente à luz do CPP um juiz justiceiro (a própria qualificação como juiz é enganosa porque os juízes de instrução não presidem a verdadeiros tribunais, são apenas ancilares em processos que um dia chegarão a julgamento, e existem para prevenir abusos, não para os coonestar) pode prender quem entenda, mesmo que a razão verdadeira seja apenas prender para investigar, ou por ter a convicção da culpabilidade – como se os erros judiciários não se fundassem por vezes, precisamente, em convicções que as exigências de prova acabam por não substanciar e como se a forma de suprir as insuficiências e falta de meios da PJ e do MP fosse tripudiar em cima de direitos das pessoas.
Há um juiz que se tornou notório, e estimado pela opinião pública, por trancafiar poderosos. Ela, a opinião pública, não se engana: com ele o suspeito vai dentro com mais probabilidade do que com outros, o que quer dizer, entre outras coisas, que conservar ou não a liberdade depende de um sorteio.
Escogitando das razões do STJ, a primeira parece-me ser a preguiça: fosse maior a probabilidade de sucesso e seria mais uma arma nas mãos dos advogados, que, ainda por cima com prazos apertadíssimos, obrigaria a uma chusma de decisões novas.
A segunda parece-me ser o corporativismo: todos os dias há sentenças que são total ou parcialmente infirmadas em sede de recurso, mas isso só interessa às partes e por definição 50% do universo fica contente. Não é assim com casos mediáticos de âmbito criminal, em que a reversão de decisões privativas da liberdade poderia minar a confiança que a comunidade deposita no sistema judicial e policial. É como dizia uma personagem n’A Verdadeira História de Ah Q, de Lu Hsun: Mais vale mandar um chinês para a guilhotina que corrigir o erro de um juiz.
De modo que Manuel Pinho é apenas uma peça num mecanismo que o transcende, como já Sócrates foi. Que, com diferenças de grau, sejam duas personagens abomináveis, não tira nem devia pôr nada: ao contrário do que julga a opinião pública, que de todo o modo é uma rameira volúvel, a justiça não se realiza com seguidismo em relação a ela, nem à publicada; e a pergunta que pessoas com discernimento deveriam fazer é menos como é possível que gente com recursos os utilize para retardar decisões e mais o que pode suceder a quem não os tenha.
Nota editorial: Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.