Não é verdade que a nossa família sejam todas as pessoas com quem temos laços de consaguinidade. Nem, sequer, aquelas com quem compartilhamos uma história. Ou uma mão cheia de memórias. Há uma diferença entre as pessoas que, “tecnicamente”, são da nossa família e “A nossa família”. E, desde logo, isso acaba por ser triste. Porque nos leva a reconhecer que, no entretanto, nos fomos desencontrando, tragicamente, de pessoas cuja presença se teria de dar, com frequência, na nossa vida. Daquelas com quem se trocam gestos e palavras. E mensagens. E se brinca. Ou de quem se sabe meia dúzia de patetices que nos levam a rir delas, de todas as vezes em que as recordamos, outra vez. E pessoas com quem se assinalam datas que fazem desse rendilhado de memórias um património de carinho que nos leva a estar aconchegados uns nos outros. Que é, de certa forma, aquilo que nos faz sentir, a todos, em família.
Sempre achei que isso de constituir família é uma tolice. Porque nos traz a veleidade de sermos a estaca zero duma história. Como se fosse possível começar do zero o amor com alguém enquanto descuidamos, desamparamos, desconsideramos ou desmazelamos muitas das outras pessoas que vivem em nós e que, todas juntas, são a nossa família. E só porque o são como são somos como somos: nós! Como se fosse possível os pais amarem os filhos com bravura e candura e, ao mesmo tempo, ignorassem ou desvalorizassem os seus pais, os irmãos, os tios, os primos ou os amigos. Com se cada família fosse uma ilha, quando não o é. Sempre que alguém “constitui família” está a dizer que deixou de acreditar no Natal! Como podem as pessoas que constituem família chamarem à família dos seus filhos nuclear, quando o nuclear é percebermos que todas as pessoas que vivem dentro de nós são a nossa família? E que enquanto não percebermos isso jamais nos celebramos uns aos outros? Será que não percebem que o Natal se faz derrubando muros e barreiras e obstáculos imaginários e as pequenas serventias que nos separam? Será que quem divide o mundo entre os familiares e aqueles que se tornam, aos bocadinhos, estranhos pode reclamar pela religiosidade do Natal quando religião significa re-ligar; e re-ligar, outra vez? Como podem as pessoas que faltam à verdade ousar falar do Natal como a festa da família? Como podemos amar enquanto transformam os outros em estranhos ou intrusos?
Mas, à parte de todas as afrontas ao Natal, há pessoas que, devagarinho, mesmo que façam parte da nossa família, vão deixando de ser da família. Daquelas que saem sem estrondo. Mas que, silenciosamente, deixamos que se afastem de nós. E que, primeiro, com uma desculpa mal enjorcada, faltaram a um almoço ou falharam uma data preciosa qualquer. Depois, se esquecem de nos dar um presente, mesmo que sejam lestas a receber aqueles que escolhemos para lhes dar. A seguir, que parecem deixar de saber quando fazemos anos ou, um ano atrás do outro, escolhem enviar uma mensagem sempre no dia a seguir. Ou que, de rivalidadezinha em rivalidadezinha, no fim da linha, se afastam e afastam e, de lonjura em lonjura, se for preciso, exigem atenções da nossa parte, com uma sobranceria sonsa, enquanto nada nos dão em troca.
E, para além delas, claro, há outras pessoas que se afastam porque as acomoda serem os lesados oficiais de cada família. E que, à boleia dum argumento habilidoso, jogam a culpa de tudo o que vai mal na vida delas sobre nós, enquanto se excluem. Como se, com a sua ausência, com que nos castigam dum mal incerto que lhes teremos feito (sem que, contudo, tenham tido a coragem, a lealdade e a humildade de nos trazerem à fala e de nos considerarem), fossem roubadores do nosso Natal. Há muitos roubadores do Natal! Em todas as famílias! Mesmo quando os julgamentos que eles façam se dêem sem culpa formada e sem acesso ao contraditório. Há tantas pessoas que comemoram o Natal enquanto elegem a violência em comentários emboscados ou ao mesmo tempo que fazem processos de intenções ou castigam por delitos de opinião!… Como se pode acarinhar o ódio e festejar o amor? O Natal é, tragicamente, para milhões de pessoas, uma mentira!
E, depois, as famílias têm demasiadas pessoas amuadas umas com as outras. E pessoas que parecem ter um caderninho de ressentimentos que burilam, continuadamente. Sobretudo, nestas alturas. E pessoas que não se dão mas que, como se isso fosse possível, fazem questão de fazer parte da nossa família. E pessoas cujas relações têm demasiadas páginas em branco como se nada disso fosse importante para se construir uma mesma história e fazermos com todos nós uma família. E pessoas opacas. E sombrias. E pessoas atoladas em lamúrias bafientas que separam as pessoas. Mas, claro, até para essas o Natal é paz. Amor. Verdade. E família. Sempre!…
As famílias têm muitas pessoas que deveriam ser, preciosas e indispensáveis mas que, ano após ano, se tornam secundárias e figurantes. E caricaturas amarfanhadas de si próprias. Mesmo que, tecnicamente, sejam elas as guardiãs da família. Mesmo que lhes falte a humildade com que se ergue o Natal. O Natal faz com que os presentes nos sinalizem a todos como indispensáveis! Por isso, não se entende quem é que teve a ousadia insana de atribuir ao Natal o valor duma tradição? Como se fosse, quando muito, um rito? Ou uma espécie de realidade aumentada sem pés para se ir da memória, de gesto em gesto, em peregrinação para o futuro?
A esmagadora maioria das famílias está cheia de pessoas que se dão mal. O que, feitas as contas, talvez queira dizer que se dão ao mal. Como se fosse possível darem-se assim, ao mal, e, ao mesmo tempo, sentarem-se à mesma mesa e fazerem a festa da família como quem comunga com o Natal.
Eu acho que há por ai inúmeras pessoas a dizer que o Natal é para as crianças porque nos iludimos que elas acreditam que o pai Natal. Como se cento e tal quilos de peso dum idoso com mais de 80 anos, alguns pares de renas, mais o peso do trenó e uma ou outra tonelada de prendas levantassem voo sem motor de arranque e tivessem a destreza dum ovni a deslizar, céu adentro, por entre as horas. Porque enquanto alimentamos essa ilusão, e entramos numa vertigem de stress para organizar, com pompa, uma festa em que quase ninguém acredita, não conversamos sobre o Natal. É mais fácil matarmos a cabeça a pensar como vamos sentar à mesma mesa pessoas que mal se toleram como, por exemplo, a nossa mãe e a nossa sogra. Ou entrarmos em contagem decrescente para não explodirmos ao primeiro comentário boçal dos protagonistas do costume. Ou engolirmos o azedume só de imaginar que vamos servir uma cunhada arrogante que nos elege como sopeira.
O Natal não pode ser só a gratidão simbólica de termos sido os meninos Jesus de uma ror de gente que nos deu as boas vindas e ficou feliz por termos passado a existir. Nem pode ser só o marco cristão que tantas pessoas sinalizam enquanto há pais que não falam com filhos e irmãos que se detestam. No Natal não se comemora o passado. Celebra-se o futuro!
Mas, no entretanto, não, não é verdade que acreditemos no Natal! É claro que um presente é a prova de vida da forma como conhecemos, intimamente, alguém que é precioso para nós. E que essa prova faz com que sejamos capazes, sem cartas ao Pai Natal, de avinhar os desejos das pessoas que amamos a ponto de escolhermos seja o que for, desde que tenha a sua cara. É isso que é um presente: uma prova de amor! Quando os presentes se dão sem critérío ou às resmas isso não presentes. São cortinas de fumo para disfarçar que não acreditamos no Natal. Sempre que os presentes são utilizados para exibirmos o poder de os comprarmos eles servem para magoar com o que damos. Ou para demonstrar que, à falta de fé no amor e nos laços, compramos pessoas, com se ao céu do coração de alguém se chegasse pelo tamanho da esmola e nunca pela grandeza dos gestos.
É por isso que era bom se tivéssemos a humildade de pegar em todos os pedacinhos de lixo que há dentro de nós e que transformássemos o Natal – este Natal! – numa oportunidade de nos darmos à verdade. Todas as pessoas são da nossa família! É verdade que sim. Mas as pessoas com quem temos laços e histórias e memórias e segredos e patetices e sei lá o quê mais são a nossa família nuclear. Indispensável! É isso que o nuclear quer dizer. Indispensável para estarmos vivos para o amor! Desistirmos de o fazer, enquanto nos deixamos corromper por todos aqueles que nos roubam à luz, significa que nos desencontrámos, mais uma vez, a pretexto do Natal. Que é forma de aceitarmos que começamos a morrer na festa da família. E, se for assim, o ano novo – que começa a 24 de Dezembro, como sabem – será um infeliz ano novo!
Estamos, pois, a dois dias de reclamar a inteligência que temos o dever de ter. E de deixarmos de ser pessoas agitadas e concentradas no faz de conta enquanto, tecnicamente, comemoram o Natal. Com as pessoas que, tecnicamente, são da nossa família. Enquanto, tecnicamente, repetimos as mesmas fórmulas de todos os anos. Como se, quando muito, só tecnicamente fossemos pessoas. Tecnicamente, inteligentes. E, tecnicamente (só tecnicamente…) capazes do amor.
É altura de darmos o exemplo de que somos capazes de ser bondosos e verdadeiros. Primeiro, por um dia. E, depois, de milagre em milagre, para sempre. Afinal, logo que duas pessoas se dão à verdade e se comungam dá-se um milagre. E sempre que desponta um milagre chega-se ao Natal!