Em agosto de 2011, a polícia inglesa mandou parar um táxi onde seguia Mark Duggan, um conhecido criminoso do bairro londrino de Tottenham. Tinha 29 anos e 6 filhos — e uma pistola Bruni BBM, que está proibida no Reino Unido. Duggan, que era o alvo de uma investigação, saiu do carro e foi baleado mortalmente por um dos agentes. Começaram imediatamente a surgir dúvidas. Mark Duggan sacou da arma ou não? E disparou ou não? Inicialmente, a polícia garantiu que ele pegou na pistola — mas não era verdade. E uma bala alojada num dos rádios da polícia indiciava que ele tinha disparado — mas também não era verdade. A dada altura, a polícia reconheceu: “É possível que tenhamos verbalmente induzido em erro os jornalistas no sentido de acreditarem que tinha havido uma troca de tiros.”

Nos dias seguintes, os motins espalharam-se por Brixton, Wood Green, Dalston, Enfield, Woolwich, Shepherd’s Bush, Oxford Circus e Islington. Houve lojas saqueadas, autocarros destruídos e incêndios provocados por cocktails molotov. No livro de memórias que acaba de publicar, Boris Johnson, que na altura era presidente da Câmara, escreve que nunca tinha havido tantos fogos em Londres desde o Blitz de 1940.

Boris Johnson lembra também as explicações que foram dadas para, de alguma forma, justificar os motins. Entre elas estavam as contradições iniciais dos agentes sobre as circunstâncias da morte (sendo que eles foram totalmente ilibados no final) e a relação supostamente complicada entre a polícia e as várias comunidades.

Em 2024, os motins foram mais violentos e foram mais alargados. Houve pilhagens, fogo posto e até carrinhas da polícia incendiadas. As críticas à polícia repetiram-se e foram muito semelhantes às de 2011. Um líder partidário fez declarações que foram alvo de censura por aqueles que as viram como uma forma de desculpar a desordem: “As coisas não teriam assumido estas proporções se as autoridades tivessem dito a verdade muito rapidamente. Não acredito que nos estejam a dizer a verdade. Eu quero saber. Dei uma oportunidade à polícia de acabar com a especulação. Deviam ter feito isso.” Nas redes sociais, espalhou-se imediatamente a acusação de que a polícia usava “dois pesos e duas medidas” e que estava a atuar de forma severa contra os autores dos distúrbios apenas por motivos raciais.

Para evitar precipitações, talvez valha a pena referir dois detalhes em relação ao que se passou no Reino Unido em 2024. Primeiro detalhe: o político que criticou a polícia por não ter dito a verdade “muito rapidamente” foi Nigel Farage, líder do partido de direita radical Reform UK. Segundo detalhe: aqueles que se queixavam dos motivos raciais que alegadamente levavam a polícia a usar “dois pesos e duas medidas” na repressão dos motins eram militantes de extrema-direita que se sentiam vítimas do aparelho de Estado e argumentavam que a polícia tinha sido muito mais branda a lidar, por exemplo, com as manifestações do movimento Black Lives Matter.

Os polícias podem cometer erros e podem, até, violar a lei. Já aconteceu e, infelizmente, vai voltar a acontecer. Por isso, sempre que há dúvidas ou acusações, os agentes são escrutinados, são investigados e, se for caso disso, são punidos. Mas convém nunca esquecer uma verdade elementar: sem polícia não há Estado de direito. Se alguém, por razões políticas, pretender aproveitar o atual momento de tensão em Portugal para transformar a instituição policial num símbolo de opressão deverá ter a cautela de reparar no que se passou no Reino Unido: aqueles que se consideravam oprimidos em 2011 eram uns; mas aqueles que se consideravam oprimidos em 2024 eram outros. A descredibilização da polícia pode ter efeitos inesperados. Por isso, tenham cuidado com o que desejam.

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