Tinha uma carreira profissional de sucesso, uma mudança de cidade recente que resultava claramente numa maior qualidade de vida, uma família feliz, a ver crescer as filhas com três e seis anos. Era uma vida cheia, sem tempo para ir ao médico. Ficava-me pela medicina do trabalho, cujas análises acusavam “tradicionalmente” algum excesso de colesterol e um peso um pouco acima do recomendado. Mas até praticava desporto com alguma regularidade, não era fumador habitual, nem cometia outros excessos.

Inesperadamente e “sem avisar”, num dia que até não estava a ser dos mais stressantes, subitamente, tive os três sinais principais de um AVC (sei-o agora, mas percebi logo que podia ser grave): boca ao lado, fala entaramelada, falta de força nos membros de um dos lados do corpo.

Felizmente, os colegas de trabalho foram céleres a ligar para o 112, e fui prontamente assistido no hospital. Parecia que ia conseguir ultrapassar este “incidente”. Mas… nessa mesma noite, o AVC isquémico transformou-se em hemorrágico, muito extenso. Agora sim. Estava numa situação deveras complicada e os prognósticos médicos, mesmo os mais otimistas, quando muito, previam-me um futuro agarrado a uma cadeira de rodas ou andarilho, com grande dificuldade de comunicação e uma grande dependência.

Hoje, embora conserve sérias limitações, ultrapassei largamente as previsões iniciais que me permitem uma vida que continua cheia, uma grande autonomia, uma integração na sociedade e a nível profissional. Continuo a pugnar, dia a dia, pelo bem estar e a felicidade familiar.

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Claro que teve grande peso neste “êxito”, o acesso a alguma reabilitação de qualidade, um muito bom subsistema da saúde, a perceção – minha e dos mais próximos – da importância deste longo processo. Que também potenciaram a minha força de vontade e o desejo deste “normalizar” a vida.

Só que, mesmo tendo em conta que cada AVC é único, tal como é único o processo de reabilitação, sabemos que, na maioria das situações, não acontece assim.

No AVC, após o tratamento imediato – quanto mais cedo melhor, e cada minuto conta, para salvar vidas e para que as sequelas sejam as menores possíveis – pode seguir-se um processo de reabilitação. Em que o tempo continua a ter uma grande importância, numa fase que pode ser também crucial.

Temos todos que perceber, a começar pelo próprio Estado, que não é um custo, mas um investimento. Que pode marcar a diferença entre a pessoa voltar a ter uma vida ativa, até continuar a ser um contribuinte ativo, ou se tornar mais um “fardo” para a Segurança Social. Com muitos e prováveis novos problemas de saúde, inclusive de saúde mental. Para o próprio, para os que o rodeiam, para a sociedade.

É imprescindível que o novo governo dê passos no sentido da definição e implementação de uma estratégia de acesso à reabilitação para sobreviventes de AVC. Assegurar a reabilitação, coordenada e multidisciplinar, que pode abranger fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, enfermagem de reabilitação, psicologia, nutricionistas, eventualmente outros profissionais, começando logo após o AVC, com qualidade e eficácia, e sem tempos pré-estabelecidos, é absolutamente fundamental.

Enquanto isto não acontecer, estamos todos, Serviço Nacional de Saúde (SNS), operadores privados, até seguradoras, e outros atores, muito frequentemente, a “fazer de conta” e a dar um autêntico “tiro no pé”. No que ao acesso à reabilitação diz respeito, existem disparidades gritantes em Portugal, conforme a unidade hospitalar em que se é atendido, a localização geográfica, a capacidade económica, os seguros ou subsistemas de saúde, o acesso à informação dos sobreviventes e famílias, e outras desigualdades.

Fantasiando, apetece-me afirmar: “Que pena a reabilitação não poder ser ‘administrada’ em comprimidos ou em injeções”. Estou convencido que seria tudo muito mais fácil e com mais qualidade, qualquer que fosse o custo. É que este “medicamento” está longe de ser dos mais caros. Até quando a reabilitação tem de estar em segundo ou terceiro plano? Porque é que não se olha com olhos de ver para esta realidade  que continua a ser o “parente pobre” do SNS?

O AVC é ainda a primeira causa de morte e de incapacidade em Portugal. Infelizmente, a maioria dos que ficam com sequelas não tem a mesma sorte que eu.

António Conceição, quadro bancário aposentado, é fundador e presidente da Portugal AVC – União de Sobreviventes, Familiares e Amigos, uma associação nacional constituída maioritariamente por pessoas que sofreram um AVC.

Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.

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