Da observação à hipótese: a experiencia he madre das cousas

Vivi uma infância tranquila no Império Colonial Português. Afastei-me dela aquando da revolução comunista que deixará sequelas no meu país natal por séculos, tal como a França ainda lambe as feridas da revolução de 1789. Vivi os dias da expulsão de meio milhão de portugueses dos antigos territórios ultramarinos tipificada, em Moçambique, pelo decreto 24/20, de inícios de 1975, medida do então Governo de Transição da Frelimo que determinava que essas pessoas tinham de abandonar o país onde viviam, por vezes por mais de uma geração, em 24 horas com direito a 20 quilogramas de bagagem por pessoa, o limite máximo de carga permitido nas viagens aéreas para Lisboa, a isso se resumindo os seus direitos de propriedade, eles que transformaram matos em cidades e bairros, como aquele onde eu vivia nos arredores de Lourenço Marques/Maputo, hoje varrido pela degradação e insegurança. Nasci numa família remediada apolitizada cujos avós africanos, árabes e indianos encontraram na sua miséria e na ousadia de desbravar matos as forças do seu ganha-pão, atitude prosseguida pelo meu pai mulato, que impôs a si mesmo o dever de estudar até ao quinto ano dos liceus no tempo colonial, e pela minha mãe mestiça que, desde menina islâmica nascida na África mais recôndita, estudou e fez-se auxiliar de enfermagem, depois parteira, casal que se tornou proprietário de uma vivenda modesta onde, na minha infância, havia dois automóveis, família que, repentinamente, teve de recomeçar a vida com a roupa do corpo numa barraca da Lisboa miserável. Aos quinze anos já trabalhava nas obras nas férias grandes, às vezes também nas outras, de onde saí para a sala de aula como docente. Tempos da guerra fria que, mais tarde, compreendi serem a causa da desregulação da minha vida e da de biliões de pessoas. Atravessei as transformações do modelo de família, da (muito) alargada à nuclear e desta à monoparental, incluindo fórmulas historicamente inabituais. Entrei pela primeira vez numa sala de aula em 1971 para, no meio século seguinte e sempre no seu interior, testemunhar a degradação continuada da instituição-escola até se tornar palco de boçalidades e violências que desconhecia na África oprimida ou no quotidiano do meu bairro da lata de inícios dos anos oitenta. No meu quotidiano, num par de décadas vi crescer e, depois, caminhar para uma continuada degradação social, urbanística, de segurança os sovietes da Amora-Seixal e de Almada, na Grande Lisboa. Poderia acrescentar outros detalhes.

Um ciclo de vida determinado pela imposição sempre ascendente dos ideais de esquerda, o que se foi refletindo na multiplicidade de pessoas com as quais fui convivendo. Do idoso tradicional ao novo-rico revolucionário da minha África natal que continuei a visitar, do trolha semialfabetizado ao chique-sabão-globalista-sedentário, do toxicodependente ao catequista, do negro ao branco, do indígena ao imigrante, do jovem estudante ao catedrático, entre inúmeras variantes.

Entretanto, fui articulando a escola da vida com o conhecimento dos livros e com uma investigação empírica longa, entre 1997 e 2015, que me fez dialogar com largas centenas de pessoas comuns sobre o sentido do seu tempo de vida. Tudo isso refletido nos livros que fui publicando.

Chegou o tempo de um balanço cujo rigor implica um método. Observei o fenómeno e fiz o seu registo, com contraprovas, no tempo e no espaço. Formulo agora a hipótese explicativa: todas as pessoas de esquerda são más, mas nem todas as pessoas más são de esquerda. Se validada, poderei estabelecer um princípio ou inferência universalmente aplicável.

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A validação da hipótese

Está comprovado que a pulsão sociopata da mente delinquente, quando alimentada por pretextos políticos e sociais autojustificativos, pode transitar do sujeito individual para o sujeito coletivo. É o que explica a pulsão homicida da mente estalinista, da mente nazi ou da mente terrorista, perversões coletivas da natureza humana que exigem tempo para serem compreendidas pelas próprias sociedades.

Não encontro razões válidas para abordar de modo distinto a propensão sociocida da mente de esquerda. Vladimir Lenine conquistou um lugar ímpar no século XX ao ter transformado a sua patologia narcísica num fenómeno social, depois mundial. Além de patrono moral e intelectual da esquerda, da estalinista à moderada, o pai da revolução russa de outubro de 1917 representa o génio do mal que antecede e suplanta todos os demais, Hitler incluído.

Foi Lenine quem legou a crença distópica no poder absoluto da razão contrário à natureza transcendental do ser humano herdada das mais remotas origens. Aquela significa pressupor que a dignidade humana só tem presente e não tem um passado milenar, que as pessoas podem viver da razão sem fé, que as suas cabeças podem existir desligadas do coração, que podem raciocinar sem sentir. Ao ir além da teoria, da dúvida ou do questionamento para consumar tal crença, o sujeito mutila a plenitude da condição humana correndo o risco de se fazer deus de si mesmo.

Do modo mais radical e violento de sempre, Lenine concretizou essa distopia narcísica que passou a modelar o nosso tempo à imagem e semelhança do seu criador. Tornou-se lugar-comum admitir que os indivíduos existem aprioristicamente fragmentados entre opressores e oprimidos, ideal de sociedade que as esquerdas, das revolucionárias às reformistas, mantêm vivo. Ele impõe o aprisionamento da empatia apenas num dos lados, no do oprimido, e sequestra o outro lado, o do opressor, num ódio compulsivo, uma vez que essa semi-empatia (reservada aos meus) ou empatia-ódio vive desfiliada do pressuposto da unidade do género humano e, consequentemente, da consciência da transversalidade individual e social das virtudes e vícios humanos. Esse é o caminho de desumanização da espécie.

Dele nasceu o sujeito que não sente a consciência pesada por ambicionar fazer desaparecer burgueses, ricos, patrões, cristãos, privilegiados, brancos, Israel, Ocidente, ambição revertida na repulsa primária a Trump, Bolsonaro, Salvini, Orban, Johnson, André Ventura, entre outros. É o sujeito que se socorre de qualquer pretexto, mínimo que seja, para julgar, aqui e agora, os alvos do seu ódio compulsivo.

Todavia, apenas admite ser julgado num futuro que nunca chega. Quanto mais julga os outros, tanto mais se exclui a si mesmo de julgamentos justos nos mesmos termos. Daí que nunca chegue a ser um sujeito moral. A sua existência foi determinada, na origem, por Lenine: «Acuse-os do que você faz, insulte-os do que você é», como explica Olavo de Carvalho. O seu perfil mental não é compatível com a liberdade, democracia, tranquilidade social, vida coletiva próspera e civilizada, ao mesmo tempo que o narcisismo patológico faz dele parasita exímio de tais rótulos.

Contra ele funciona a prova de fogo do sujeito moral, a passagem do tempo que nunca se deixa enganar.

Para esse sociocida narcísico, a morte de um único indivíduo, uma causa minúscula, um mero incidente podem levá-lo ao fim do mundo em busca de justiça. Fazem-no mover montanhas. O problema é que esse ideal de justiça vive paredes-meias com o seu exato contrário, a tolerância não menos radical a injustiças que não se enquadrem na sua redoma mental e que crescem à medida do seu sucesso.

Podem morrer milhões em massacres e genocídios; podem outros tantos milhões viver subjugados à opressão, crimes, assassinatos, miséria, fome; podem meio milhão de compatriotas seus serem expulsos da terra onde viviam ou nasceram arrastando traumas de violações, sevícias, expropriações, cadáveres de familiares aos quais se juntarão, nas guerras civis que se sucederam, mais uns quantos milhões de mortos; podem as pessoas queixar-se, anos a fio, do agravamento continuado da insegurança no subúrbio onde habitam; podem a indisciplina e a violência escolares crescer a cada nova geração, e os docentes entrarem em depressão ao mesmo ritmo; podem os polícias ser humilhados ao longo de uma vida, sintoma refletido nos suicídios na profissão; podem os governos deixar dívidas soberanas astronómicas que subvertem a obrigação moral de cada geração legar à seguinte mais património e riqueza do que recebeu; podem as instituições públicas resvalar para estádios de degradação décadas a fio; pode o perdedor das eleições usurpar o poder, repetindo Lenine, ou nunca se conformar com as escolhas livres dos eleitores; podem certas minorias intimidar, roubar ou espancar terceiros; podem os parasitas morais multiplicar-se a coberto dos apoios estatais; pode a ignorância letrada grassar nas universidades; podem as condições socioeconómicas contradizer as promessas a cada eleição; podem os povos queixar-se da violação reiterada da sua dignidade ou das suas fronteiras morais, identitárias ou físicas; pode o mal ganhar raízes – e nada disso perturbar a consciência das pessoas de esquerda por não coincidir com os seus ideais de autoadoração grupal.

O princípio estabelecido: todas as pessoas de esquerda são sociocidas

Não existe um único sujeito de esquerda que não se enquadre na categoria considerada, a dos sociocidas instigadores de males coletivos como a miséria ou a violência. E quem disse que essas pessoas más, como as demais, não têm direito à vida e à dignidade? Têm é de se corrigir. Obrigação delas. Mas também dever das demais não fecharem os olhos à maldade humana.