Numa lamentável e inquietante sintonia, o Parlamento Europeu, a Organização das Nações Unidas e a Associação Médica Mundial tentam por estes dias demolir um alicerce fundamental da Medicina: a objeção de consciência. A reboque de um tema vital (a saúde reprodutiva), querem definir o aborto como um pretenso “direito humano” e propõe que se considere “a objeção de consciência como uma recusa de prestação de cuidados médicos”.

A vida humana tem a mesma singular dignidade, desde a conceção à morte natural. O aborto e a eutanásia atentam gravemente, no início e no fim, contra este dom. Estas duas visões são polarizadoras, apaixonadamente abraçadas por muitos (como os autores destas linhas) e repudiadas por outros. Neste contexto, surge a objeção de consciência, um esteio da prática dos profissionais de saúde. Este conceito, que não deveria ser divisivo, tornou-se recentemente num campo de batalha, em virtude de propostas de instituições internacionais como o Parlamento Europeu, a ONU e a Associação Médica Mundial.

  • O “Relatório sobre direitos sexuais e reprodutivos”, também designado de Relatório Matic (do nome do eurodeputado croata que o elaborou) apresenta uma proposta de resolução que vai hoje a votos no Parlamento Europeu, que no seu texto “insta os Estados-Membros a despenalizarem o aborto” e “lamenta que, por vezes, a prática comum nos Estados‑Membros permita que profissionais médicos (…) se recusem a prestar serviços de saúde com base na chamada cláusula de consciência”;
  • O debate também está em curso no Comité dos Direitos Humanos da ONU, que discute uma proposta para tornar o aborto obrigatório em todos os países, nomeadamente quando a gravidez for causa de “dor ou sofrimento substancial”. Mais afirma que os países devem “remover as barreiras que negam o acesso ao aborto seguro e legal, incluindo o exercício da objeção de consciência de médicos individuais”;
  • Finalmente, a Associação Médica Mundial tem atualmente o draft da revisão do seu código de ética médica em discussão pública. A proposta de redação do art.º 27.º, sobre a objeção de consciência, impõe várias condições ao seu exercício nomeadamente que “a objeção de consciência só pode ser considerada se (…) a continuidade de cuidados está assegurada, através da referenciação efetiva e atempada a outro médico”.

Estas três entidades incorrem em três imposturas:

  1. O método. Sem descurar a substância da questão – já lá iremos – é importante notar, a despeito do que sugere a linguagem enfática de todos estes textos, cheios de sugestões e recomendações mais ou menos assertivas, que nem o relatório Matic e a sua proposta de resolução do Parlamento Europeu, nem o “Comentário Geral” do Comité de Direitos Humanos, nem o Código de Ética da Associação Médica Internacional são vinculativos, porque as entidades de onde emanam não dispõem de qualquer poder regulador. Trata-se, com efeito, de entidades para as quais os Estados não transferiram qualquer competência decisória autónoma nestes domínios, conservando plenamente a sua autonomia. Mas não é pelo facto de aqueles textos não serem juridicamente vinculativos que devemos estar descansados. De facto, neste domínio e noutros tem-se assistido a uma tendência para a aprovação de atos, ditos, atípicos (relatórios, guidelines, comentários, instruções, códigos de conduta, etc.) em organizações e outras entidades internacionais, que justamente visam contornar a impossibilidade jurídica de se tomarem decisões nas respetivas áreas, dando-lhes uma aparência quase-vinculativa. O propósito deste soft law é inequívoco: tais atos, desprovidos de qualquer validade jurídica, discretos, insidiosos, e não antecedidos de qualquer discussão política, pretendem usar o ascendente que tais entidades têm sobre os Estados para influenciar a sua atuação e a dos indivíduos.
  1. A ilusão. É por isso, de resto, que se revestem da capa dos direitos humanos. Estes têm as costas largas; basta usar a linguagem dos direitos humanos para se conseguir um ambiente de respeito. Sucede que nenhum dos textos e Tratados internacionais de Direitos Humanos – incluímos aqui a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia – mencionam um putativo “direito ao aborto”. Em contrapartida, todos eles reconhecem a liberdade de consciência (art.ºs 18.º da Declaração Universal e do Pacto, art.º 9.º da Convenção Europeia e art.º 10.º da Carta). Curiosamente, tirando o relatório Matic que faz uma referência brevíssima a alguns daqueles textos (apenas para relativizar a sua importância), nenhum dos outros a eles alude. É caso para dizer que os direitos humanos só são invocados quando dá jeito.
  1. A substância. E chegamos, finalmente à questão da objeção de consciência. Esta constitui corolário da liberdade de consciência, que, na Constituição portuguesa (art.º 41.º), tem uma consagração escrita apenas comparável ao direito à vida (art.º 24.º) e à integridade física e moral (art.º 25.º): todas estas são, ali, consideradas “invioláveis”. E é fácil compreender porquê: ser-se obrigado a agir contra a própria consciência representa uma enorme violência para a dignidade da pessoa, pois atinge-a na esfera mais íntima das suas convicções, que são expressão inequívoca da sua autonomia e individualidade. O código deontológico da Ordem dos Médicos afirma de forma clara o princípio antigo e justo de que “o médico tem o direito de recusar a prática de ato da sua profissão quando tal prática entre em conflito com a sua consciência, ofendendo os seus princípios éticos, morais, religiosos, filosóficos, ideológicos ou humanitários” (Art.º 12.1). Este mesmo código deontológico ressalva que “a objeção de consciência não pode ser invocada em situação urgente e que implique perigo de vida ou grave dano para a saúde, se não houver outro médico disponível a quem o doente possa recorrer.” (Art.º 12.3). O código deontológico da Ordem dos Enfermeiros pauta-se naturalmente pela mesmíssima abordagem. Porém, em sentido contrário, todos os projetos acima descritos têm uma redação problemática, que é incompatível com a Constituição e os códigos deontológicos nacionais. Se não estiver em questão um caso urgente ou que coloquem em risco a vida do doente, nenhum profissional de saúde deverá ter que abdicar da sua inalienável consciência, para ser obrigado a praticar – ou enviar a quem pratique – atos que colidam diretamente com os seus valores. Ou faz ou é cúmplice. Na balança da decisão, não pode pesar mais a vontade de um doente (para um ato que não é um direito humano consagrado) do que os direitos do profissional de saúde, incluindo a sua consciência.

O método, a ilusão e a substância do modus operandi de algumas entidades internacionais são sinais de um totalitarismo insidioso que progride silenciosamente, longe dos holofotes da política nacional, marcada pela espuma dos dias. Não podemos aceitar que nos coartem a liberdade, nos imponham um pensamento único, ou corroam a democracia.

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