À luz do dia, três dias depois do referendo, e com duas noites de bom sono, ainda estou a lutar para entender o que aconteceu.

Não me interpretem mal. Percebo *como* aconteceu. David Cameron, o primeiro ministro demissionário, e Boris Johnson, o seu provável sucessor, tinham os seus pequenos planos (uma coisa deu para entendermos no discurso de “vitória” do Boris, um discurso pronunciado em estado de choque: ele nunca quis nem esperou “sair” da UE). Nigel Farage, o líder do UKIP; desempenhou o seu papel previsível, agitando fascismo e racismos latentes. Pela sua parte, Jeremy Corbyn, o líder do Partido Trabalhista, não fez quase nada. No meio de tantas mentiras, factos escondidos e propaganda enganadora, o voto foi para “Sair”.

Muitas pessoas, nunca saberemos quantas, escolheram “sair” apenas como um voto de protesto, e estão agora em choque por causa dos resultados. Tanta gente que googlou “o que é a UE?” no dia a seguir ao referendo! A internet tem reportado muitos casos de insultos racistas nas ruas do Reino Unido, do género “ganhámos, vocês têm de sair”, dirigidos a a imigrantes da UE e a cidadãos britânicos de ascendência africana ou asiática.

Nunca vou compreender como uma decisão de tanta importância e com consequências irreversíveis foi posta directamente nas mãos dos eleitores – um tipo de decisão que é normalmente recusada aos mesmos eleitores nas legislativas. Sim, a democracia representativa é um sistema com muitas falhas, mas pelo menos permite que os resultados possam ser rectificados quatro anos depois, e constitui assim uma espécie de almofada entre o eleitor desinformado e a legislação. Mas o voto deste referendo não pode ser rectificado daqui a quatro anos. Mesmo se, por algum milagre, o Reino Unido permanecesse dentro ou ligado à UE, os danos já foram causados, e os monstros já estão à solta.

Os insultos racistas são exatamente o que eu receava. Os eleitores do Brexit vão perceber em breve que não vão ter o que desejavam, que os “estrangeiros” não vão ser deportados para a semana, e que vai haver novos estrangeiros a chegar, e legalmente. Preocupo-me, por isso, que as agressões racistas e xenófobas piorem. O aparente reforço da extrema-direita no Reino Unido animou a extrema-direita no resto da UE, algo que nos deve preocupar a todos.

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Os eleitores que acreditaram nas promessas nefastas de que o dinheiro poupado com as contribuições para a União Europeia iria financiar o Serviço Nacional de Saúde descobrirão em breve que o SNS continuará, depois do Brexit, nos seus apuros de sempre, senão ainda piores. O país vai passar por dificuldades económicas, pelo menos durante algum tempo, e isso não vai trazer de volta o dinheiro que foi cortado aos deficientes, não vai trazer de volta os empregos perdidos, e os negócios que desaparecerem por ser mais difícil negociar com Europa não vão criar novos empregos para ninguém.

A Escócia já está para sair do Reino Unido, e vai ter problemas em reentrar na UE. A Irlanda de Norte até é capaz de fazer uma coisa impensável na minha vida, e juntar-se à Irlanda. A união britânica acabará de vez.

Os eleitores que acham que ganharam a “independência” da Europa continental vão perceber dentro de dias que a sua ilha não está mais perto do meio do Atlântico.

E o mundo inteiro perdeu confiança no Reino Unido, e seja no que for. E sempre que os nossos governos nos assegurarem, por exemplo, que as relações entre Portugal e o Reino Unido não correm perigo, como acreditar? A confiança que tínhamos em que os nossos governos iriam pelo menos *tentar* fazer alguma coisa certa já não existe.

(traduzido do original inglês pela autora)

Three days after Brexit

In the cold light of day, three days after the referendum, and two good night’s sleep, I am still struggling to understand what has happened.

Don’t get me wrong, I understand *how* it happened. Dave and Boris cooked up their little schemes (as we all suddenly realised in Boris’ underwhelmed, shellshocked “victory” speech. He never wanted to leave). Nigel did his bit to stir up the fascists and the latent racists. Jeremy, for his part, did virtually nothing. Lies, glossing over of facts, and misleading propaganda ensued. The vote went to Leave.

Many people, we will never know how many, voted Leave just to “stick it to the man” and are now shocked at the outcome. Many people googled “What is the EU?” on the day AFTER the referendum. There have been many, albeit unverified, reports in the last 48 hours of racist abuse on the streets of Britain of the “we won, you have to leave” kind to European migrants and to British citizens of Asian and African descent.

I will never understand how a vote with such earth shattering permanence and importance was given directly to the electorate — a direct vote that is robustly denied to the electorate with the “first past the post” system for legislative elections. It may be a highly flawed system, but at least those elections can be rectified 4 years later and there is a buffering effect between entirely uninformed voter and the decision making. This vote can’t be rectified in 4 years time. Even if, through some miracle, Britain stays in the EU, the damage has been done, and the monster, no, various monsters have been unleashed.

The reports of abuse which, I suppose, should be taken lightly until further verified, are precisely what I was afraid of. Those voters will soon understand that they will not get their wish, and the “foreigners” will not be deported next week and new foreigners will still arrive and arrive legitimately. I am deeply concerned that it will get steadily worse. The apparent strengthening of the extreme-right has given strength to the extreme-right in the rest of the EU, something that should worry us all.

The voters who believed the nefarious claims that the money paid into the EU each week would now be redirected to the NHS will soon find out that the NHS will be in as much trouble, if not significantly more trouble, as it was before Britain left the EU. The country is going to go through extreme difficulties, at least for a good while, and that isn’t going to bring back the money taken away from the disabled, the unemployed aren’t going to find a job next week, and the companies that go out of business because they can’t afford to trade within the EU anymore won’t be there to give them a job the week after, either.

Scotland has all but left the Union, and will have extreme difficulty rejoining the EU. Northern Ireland might even end up doing what was unthinkable in my lifetime, and rejoin Ireland. The Union will be disbanded.

The voters who believe that they have won “independence” from the continent of Europe will soon discover that they haven’t floated further off into the Atlantic.

And the entire world has lost any kind of certainty in Britain, or certainty in anything really. And for all the reassurances that our governments give us, for example that relations between Portugal and Britain will be fine, we can be sure of one thing: that any trust any of us had left in any government to at least *try* to do the right thing has been shattered.