Não faltam inimigos da inteligência humana onde jamais deveriam existir: universidades, comunicação social, meios intelectuais e artísticos. Quem enfrenta a «guerra cultural» contra a esquerda fá-lo pelo dever de fazer regressar a razão à vida social. Entre outros pensadores e teorias que seriam populares se as nossas instituições não fossem dominadas por um histerismo ignorante que se arrasta há décadas, seleciono a teoria dos círculos concêntricos de Fernand Braudel (historiador), mais tarde confirmada pela teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein (sociólogo).

A teoria original explica que, há mais de meio milénio, as lógicas do funcionamento e da compreensão do mundo se organizam em círculos concêntricos. Quer dizer que existe um centro (ou centros) que modela as zonas intermédias e zonas periféricas, isto é, a melhor forma de compreender as periferias é olhar ao mesmo tempo para os centros e vice-versa. Isso porque os fluxos económicos transcontinentais de longa duração aproximam territórios vastos entre si, sendo que tais fluxos são indissociáveis de outras dimensões da vida humana que também tendem a ser partilhadas: modelos de governo e de sociedade ou diversos hábitos culturais.

Todo esse conjunto tende a funcionar com o correr do tempo com base nas mesmas lógicas, porém com diferentes intensidades na riqueza ou na pobreza, na paz ou na violência. Seguir pelo mundo o rasto da origem e propagação das línguas europeias ou do cristianismo, mas também do consumo massificado da Coca-Cola ou dos hambúrgueres do McDonald’s são sintomas relevantes. Os centros do mundo são mais inovadores no plano tecnológico, porém mais estáveis nas transições políticas e sociais. À medida que caminhamos para as periferias vemos o inverso, estas ampliam o consumo das modas tecnológicas importadas dos centros em «versões adaptadas» e, nos momentos de transição política e social, são bem mais instáveis, revolucionárias ou violentas.

Com esse ponto de partida fica simplificada a compreensão das consequências para o mundo da vitória eleitoral do republicano Donald Trump nas eleições de ontem, 5 de novembro de 2024, nos Estados Unidos da América (EUA). É fácil prever que nas próximas décadas será irreversível a transição de um ciclo secular de ascensão e hegemonia da esquerda, cuja origem remonta à revolução russa de 1917, para um novo ciclo longo em que as democracias se irão renovar e consolidar pela ascensão e hegemonia da direita, o contrário do veneno mental despejado para cima das sociedades em doses cavalares pela comunicação social.

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Para testar a utilidade prática de uma boa teoria, a dos círculos concêntricos de Fernand Braudel (ou do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein), sugiro a cada leitor que arranje ou imagine um planisfério/mapa-mundo e um compasso. Fixe a haste do compasso com a ponta metálica perfurante em Washington (EUA), o centro do mundo de onde irradiará, a partir de janeiro de 2025, uma lógica de governação profundamente renovada com o regresso à Casa Branca de Donald Trump. No mandato que agora inicia, a sua legitimidade saiu reforçada em relação ao mandato anterior (2016-2020) pelo crescimento do apoio eleitoral, pela maior transversalidade social, inter-racial e interétnica desse apoio, o que significa que as sementes lançadas no seu país e no mundo nos últimos oito anos por Donald Trump não pararam de frutificar.

No passo seguinte, ajuste a abertura da outra haste do compasso, a que traça o círculo com a ponta de lápis, à cidade de Buenos Aires, na Argentina, no extremo sul da América do Sul. Depois comece a rodá-la no sentido do oceano Atlântico de modo a passar por Maputo, em Moçambique, no Oriente da África Austral. Continue seguindo para norte até Budapeste, na Hungria, na Europa Central. Feche o círculo passando pelo oceano Pacífico no regresso a Buenos Aires.

Fica a cartografia da área geográfica mundial que avançará para um ciclo histórico de mudança porque o centro, Washington (EUA), entrou em rotura clara, incisiva e efetiva com a esquerda norte-americana que tinha o controlo hegemónico desse mesmo espaço territorial mundial amplo desde o final da segunda guerra mundial (1939-1945). Consolida-se agora uma direita que impõe uma lógica política, social e económica profundamente renovada.

Ao contrário de 2016 quando Donald Trump, e o Partido Republicano norte-americano, embarcaram numa aventura solitária de rotura com a esquerda, em 2024, além de inúmeras tendências favoráveis dispersas pelo mundo, Javier Milei já é um ponto de apoio sólido na Argentina (desde 2023), Venâncio Mondlane anuncia romper com a esquerdista Frelimo em Moçambique (uma convulsão popular inédita está nas ruas moçambicanas) e, na Hungria, Viktor Orbán consolidou a sua rotura com a esquerda (desde 2010).

Se ligarmos Washington a Buenos Aires, Maputo e Budapeste percebemos que, na próxima década, no interior do círculo, isto é, do seu centro às suas periferias a erosão da esquerda será inevitável, e tudo o que a mesma representa.

Logo, as lógicas dominantes na governação das sociedades e no concerto das nações passarão a ser as da redução da estatização das economias e dos impostos; reforço das garantias da liberdade individual; ascendente da autorresponsabilidade individual e coletiva («America First») e consequente deslegitimação da vitimização de certos indivíduos, comunidades, povos ou continentes; fim do controlo mental das sociedades pelo pensamento único resultante do assalto da esquerda a instituições estratégicas: universidades, comunicação social, escolas, meios culturais e artísticos; restabelecimento da universalidade da lei e da ordem contra privilégios das minorias (raciais, étnicas, sexuais); combate efetivo à corrupção e criminalidade; redução drástica de fluxos migratórios ilegais e desregulados, isto é, recuperação da defesa das fronteiras externas abandonadas pelos globalistas; reversão das distopias identitárias (antirracistas, ideologia de género, radicalismos feministas); defesa das identidades religiosas cristãs; entre outras tendências de regulação da vida quotidiana – uma bola de neve de assuntos que passarão de periféricos a centrais na vida dos povos, o que significa que as sociedades e o sistema internacional entrarão num ciclo de transformação profunda do que tomamos por causas morais e cívicas.

A comunicação social tenta enganar-nos, mas a esquerda norte-americana está condenada a ter de perceber que teve uma derrota eleitoral das mais pesadas da sua história. Durante décadas, a sua hegemonia ideológica no mundo foi, ao mesmo tempo, o seu maior trunfo para se afirmar no jogo político doméstico, nos EUA. Esse poder já estava em erosão significativa desde 2016 e, com a nova derrota eleitoral de ontem, a recuperação não será possível por muitos anos futuros. A Donald Trump já ninguém tirará o troféu de ser o maior pesadelo dos democratas norte-americanos, isto é, da esquerda internacional. Absolutamente notável!

Última nota. Tal como no último século, Portugal continuará a meio caminho medido em linha reta entre o centro (Washington/EUA) e uma das suas periferias (Budapeste/Hungria) e, desse modo, não escapará aos ventos de mudança do sistema internacional que sopram de todos os lados. Mas por essa mesma razão, os portugueses não sairão dos brandos costumes, típico de almas que a natureza tempera no meio-termo do mundo.