Entre os labirintos da palavra e o eco das interpretações, repousa uma verdade que é tanto desconfortável quanto inegável: a liberdade de expressão não é apenas um direito, mas também uma responsabilidade. Esta responsabilidade manifesta-se na forma como ponderamos o impacto das nossas palavras sobre os outros. Por exemplo, ao criticar uma ideia, devemos assegurar que a nossa abordagem fomente o diálogo em vez de gerar ressentimento. Da mesma forma, ao defender uma posição, cabe-nos garantir que a nossa linguagem não perpetue estereótipos ou amplifique desigualdades existentes. Ao citar o apóstolo Paulo — “Tudo é permitido, mas nem tudo convém” —, somos desafiados a reavaliar não apenas o que dizemos, mas também o porquê e o como dizemos. Este convite à reflexão revela-se particularmente pertinente num momento em que o debate público parece muitas vezes reduzido a um mercado de rótulos ideológicos, onde cada palavra dita é rapidamente catalogada como sendo de esquerda ou de direita, progressista ou conservadora, inclusiva ou retrógrada.

Porém, será possível que esta compulsão por rotular nos impeça de compreender plenamente o verdadeiro conteúdo e intenção de um texto? Há algo profundamente irónico na rapidez com que ‘liberdade’ e ‘expressão’ se transformam em armas de polarização, esquecendo-se que o diálogo é tanto mais rico quanto mais diversa é a polifonia das vozes.

A liberdade de expressão pode ser comparada a uma orquestra. Cada instrumento representa uma voz única, essencial para a harmonia coletiva. No entanto, quando um instrumento se torna excessivamente alto ou domina a melodia, a sinfonia perde a sua beleza e sentido. Neste contexto, responsabilidade significa encontrar um equilíbrio: preservar a singularidade das vozes individuais sem comprometer a coesão da música coletiva. Este equilíbrio, embora frágil, é essencial para garantir que a liberdade não se transforme em caos e que a responsabilidade não degenere em censura.

Considere-se o diálogo como uma ponte sobre um rio turbulento. De um lado, a liberdade de expressão edifica os pilares, permitindo a passagem de ideias; do outro, a responsabilidade coloca os cabos de sustentação, garantindo que a estrutura não colapse sob o peso do preconceito e da incompreensão. Imagine um cenário em que um orador usa a sua liberdade para criticar um grupo minoritário. Embora tal discurso possa ser protegido como expressão, a falta de responsabilidade em evitar a incitação ao ódio transforma o pilar da liberdade num risco de colapso social. Em contraste, considere debates académicos onde ideias controversas são discutidas com respeito e rigor. Neste caso, a ponte não apenas suporta a travessia, mas também inspira a construção de novas estruturas para o diálogo futuro. Sem esses cabos, a ponte torna-se apenas um potencial colapso em construção. A compaixão, aqui, age como o arco que conecta os extremos, iluminando os caminhos para a compreensão mútua.

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Quando o texto “A Cegueira Deliberada da Leveza Ocidental“, publicado no Observador no dia 29 dez. 2024, cita Michel Foucault, Simone de Beauvoir ou Friedrich Nietzsche, é inócuo interpretá-lo como um manifesto de ‘wokismo’ ou qualquer outra inclinação específica. As ideias são invocadas como ferramentas para iluminar a complexidade do mundo, não como bandeiras de uma doutrina. Será, então, ilegítimo recorrer a pensadores e filosofias para analisar a hipocrisia da inclusão superficial? Ou será que estas citações apenas nos incomodam porque nos confrontam com verdades desconfortáveis?

Numa sociedade dominada pelo imediatismo, é frequente que a profundidade do discurso seja sacrificada em prol da velocidade com que conseguimos emitir opiniões. As redes sociais são um exemplo paradigmático deste fenómeno: enquanto plataformas como o X (antigo Twitter) privilegiam a concisão, muitas vezes em detrimento da complexidade, aplicações como o TikTok transformam debates em vídeos de segundos. Tal ambiente incentiva reações instantâneas, frequentemente emocionais, reduzindo o espaço para análises profundas ou reflexões ponderadas. O pensamento crítico, que deveria ser o farol na escuridão da desinformação, é frequentemente apagado pela tempestade de preconceitos e interpretações superficiais. Tal como na fábula do Rei Vai Nu, de Hans Christian Andersen, onde apenas uma criança ousa apontar a verdade, talvez precisemos de mais vozes que, livres de pressões ideológicas, possam questionar o óbvio e reexaminar o que tínhamos por garantido.

Neste sentido, o que está em causa não é apenas a liberdade de expressão em si, mas também o contexto em que esta se manifesta. A responsabilidade de um autor não é apenas dizer o que acredita ser verdade, mas também oferecer ao leitor a possibilidade de refletir sobre essas verdades. É precisamente aqui que reside a essência do pensamento crítico: não em aceitar ou rejeitar ideias com base em preconceitos ideológicos, mas em examiná-las à luz da razão e da empatia.

E o que dizer da compaixão? Na obra de Emmanuel Levinas, a responsabilidade para com o Outro é vista como uma exigência ética que transcende o meramente racional. É nesse reconhecimento do rosto do Outro que encontramos o limite para a liberdade de expressão: aquilo que dizemos e como o dizemos deve sempre preservar a dignidade humana. Assim como não esmagaríamos uma flor por mero capricho, não deveríamos usar a linguagem como um instrumento de opressão. A linguagem, na sua complexidade, deve servir como ponte e não como muro, promovendo uma compreensão mútua que enriqueça o tecido social.

É curioso que, em vários dos comentários recebidos, se identifique no texto um excesso de introspeção ou uma ‘culpabilização’ do Ocidente. A questão não é, no entanto, de culpa, mas de compaixão e responsabilidade partilhada. Quando apontamos as falácias de um sistema que marginaliza o outro, não estamos a abdicar da nossa identidade; estamos a ampliá-la, reconhecendo que a nossa humanidade é mais rica quando não se limita a fronteiras geográficas ou culturais.

Assim, este texto não pretende ser uma defesa ou ataque a qualquer ideologia. Antes, é uma reflexão sobre a necessidade de ultrapassarmos o simplismo dos rótulos. Porque, como bem nos lembra a passagem bíblica que dá título a este texto, o que nos convém não é a permissividade desmedida nem o conformismo cego, mas o esforço de compreender o outro sem reduzir as suas ideias a uma caricatura ideológica.

Sejamos, pois, ousados na liberdade de expressão, mas também humildes na forma como a exercemos. Porque, no fim, a verdadeira grandeza não reside no volume das nossas palavras, mas na profundidade da nossa capacidade de escutar. Quando escutamos atentamente, criamos um espaço onde ideias florescem e soluções antes invisíveis emergem, transformando conflitos em oportunidades de crescimento coletivo.