Karl Popper defendeu, entre muitas coisas, a primazia da interpretação na observação de qualquer fenómeno. Nada é percebido no seu estado puro, pois o nosso próprio processo de apreensão e internalização da informação envolve processamento cognitivo e por conseguinte, mesmo involuntariamente, tudo acaba por ser filtrado por uma espessa rede de teorias implícitas (como a descodificação de estímulos visuais no córtex cerebral, que destaca automaticamente o aparecimento de faces ou serpentes, por exemplo) e teorias explícitas (o transeunte de polegar estendido está em princípio a pedir boleia, não a congratular a cor do nosso veículo).

As palavras “vai ficar tudo bem”, que neste tempo pandémico se tornaram chavão, são um excelente exemplo de uma afirmação que não é auto-explicativa. É possível conjecturar dezenas de interpretações e corolários das mesmas quatro palavras, conjecturas que oscilarão entre o estapafúrdio e o convincente. Partilharei algumas que acho interessantes.

A minha primeira reacção às palavras “vai ficar tudo bem” foi um irresistível revirar de olhos. Interpretei a frase como mais um acto de condescendência e paternalismo para com os mais novos. Como se não pudessem ouvir da nossa boca dúvidas ou incertezas. Como se o adulto possuísse sempre as respostas para tudo, incluindo o desfecho de uma pandemia que à data estava nos seus primeiros meses. Como se, por princípio, uma criança não pudesse assimilar a realidade à sua volta, ainda que com grau variável de compreensão dependente da idade e interesse. Está também implícita nesta ideia a noção corrosiva, e endémica na sociedade, que é errado mentir, excepto se for a crianças. Não quero soar demasiado duro, não duvido das boas intenções de quem o faz e não duvido da relativa benignidade da maioria dessas mentiras, sejam elas o Pai Natal, a cegonha ou a fada dos dentes. Mas também não duvido que existe demasiada leviandade nessa prática e existe demasiada indiferença para com os sentimentos dos mais pequenos, como se esses sentimentos não fossem tão verdadeiros como os de um adulto. Um exemplo paradigmático do que estou a tentar transmitir é a tradição que o talk show americano “Jimmy Kimmel” alberga, na qual todos os anos, no Halloween, pais fazem a “brincadeira” de dizer aos filhos que lhes comeram todos os doces de Halloween e que não sobrou nada, filmando em êxtase as reacções de frustração, desespero e tristeza dos pequenos. Talvez o leitor não ache estes vídeos perversos, mas quiçá o façam reflectir sobre a possível presença de um viés moral no que toca a esta temática.

Outra interpretação possível, que achei ser comum, é a de um conformismo optimista. Uma espécie de apelo ao sobrenatural, a algo fora do nosso controlo. Qualquer coisa como “vai tudo correr bem, se Deus nosso Senhor quiser e tiver a bondade de providenciar”. O que é também uma interpretação problemática em mais do que uma perspectiva. Por um lado, porque desvaloriza o papel activo do ser humano na resolução do problema, ao nível institucional, seja em medidas mitigatórias de saúde pública ou no rápido desenvolvimento de uma vacina; por outro lado, retira agência ao indivíduo, diminuindo o sentido de responsabilidade de cada decisão individual que toma, com ideias como “se está nas mãos no destino, não será aquele jantar de amigos que será consequente”.

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Há também a interpretação irónica, que ao utilizar a frase (e aqui o tom e o contexto são importantes) transmite que na verdade muita coisa vai ficar mal, nomeadamente a saúde ou a economia, ou até mesmo a sociedade em geral. Lembro-me bem desse sentimento expresso, principalmente no primeiro confinamento e principalmente vindo de Itália, de que “nada voltará a ser o mesmo”, que “o mundo mudou” ou a ideia que esta pandemia deixará marcas na sociedade semelhantes às deixadas pelas duas grandes guerras.

E finalmente há a interpretação, talvez a mais consensual, que “vai ficar tudo bem” significa que vamos sobreviver, melhor ou pior, com mais ou menos mortes, a esta pandemia. Que a economia recuperará, mais ou menos rapidamente. E que a vida normal voltará, mais ou menos como antes. Nesta intepretação podem subentender-se duas correntes: uma primeira em que apesar de se reconhecerem as gravíssimas consequências que a pandemia tem, as entendem como temporárias, como um tsunami que galga a terra espalhando morte e destruição mas depois retrocede dando lugar a uma reconstrução mais ou menos lenta mas que levará a que tudo quede como antes. No outro extremo do espectro, a interpretação de que a vida normal voltará, mas isso implique redefinir o normal; que as normas de contacto social nunca mais sejam como antes, que o uso de máscara seja indispensável, que a “época da gripe” passe a ser tacitamente uma época do ano mais letal, mas que a humanidade se adaptará e, nesse novo normal, seguirá o seu percurso.

A minha interpretação, apesar de mais próxima desta última mais consensual, é fundamentalmente diferente. Quiçá poderá ser apelidada de optimista, ou melhor ainda, adjectivada de ingénua, uma crítica que gosto de levar ao peito qual brasão de Oxford.

A pandemia Covid-19 mostrou que a civilização, apesar de toda a impreparação, está apta a enfrentar novos problemas, a resolvê-los e, igualmente importante, a utilizar o conhecimento gerado nessa resolução para melhorar a condição humana. Estamos tão habituados a esta civilização de rápida mudança e de rápido progresso que facilmente esquecemos que tal não foi a realidade de virtualmente toda a história da Humanidade, com a excepção dos últimos 300 anos, fruto do Iluminismo e das revoluções científica e industrial subsequentes. Um pequeno salto à Wikipedia e podemos ficar a saber um pouco mais sobre a Peste Negra do século XIV, que chacinou metade (!) da população da Europa. Mas talvez ainda mais impressionante do que estes números difíceis de conceber, seja a manifesta impotência para lidar com o problema por parte de uma sociedade estática, retrógrada e ignorante.

“O Triunfo da Morte”, de Pieter Bruegel, o Velho, reflecte o levante social e o terror que se seguiu à peste, que devastou a Europa medieval (Museu do Prado, Madrid)

De volta aos nossos dias, o desenvolvimento de uma vacina, que há décadas atrás levaria anos, completou-se em menos de um ano. Não só foi rápido, como logrou implementar e dar uso a uma nova tecnologia (mRNA), melhor e mais universal do que tecnologias prévias de imunização. A aprendizagem neste processo (científica, tecnológica, regulatória) implicará certamente esperas cada vez mais curtas a lidar com problemas semelhantes no futuro. Por comparação, o primeiro plano nacional de vacinação em Portugal foi implementado em 1965. Eu apelidaria isto de progresso.

Por outro lado, dentro da tragédia, poderia a pandemia ter-se manifestado com um vírus mais letal, cujo eventual surgimento é uma inevitabilidade algures no futuro, na era da aldeia global. Parafraseando Amesh Adalja, um infecciologista americano, encaremos a presente pandemia como um “ensaio-geral”, em que muita coisa poderia ter sido melhor executada e essas lições estão a ser aprendidas para o futuro.

Problemas são inevitáveis, muitos deles imprevisíveis. O asteroide em rota de colisão com o planeta Terra já vem certamente a caminho apesar de ainda não o vermos. Esta é a realidade que superficialmente parece difícil de aceitar e que leva muitas pessoas ao pessimismo e ao cinismo. Mas tal postura é infundada. Porque, se por um lado, os problemas são inevitáveis, também é verdade que todos os problemas têm solução, desde que existam o conhecimento e saber certos. E é nisso que a nossa civilização, desde o Iluminismo, se destaca das outras que existiram no passado. Porque adopta uma postura de resolução de problemas, correcção de erros e de aprendizagem. Este meu optimismo não é cego. Acredito que existem por princípio soluções, mas não há garantia que as encontremos ou que sejamos capazes de gerar o conhecimento necessário atempadamente. Nada é garantido, podemos falhar e podemos não sobreviver. Mas sabemos que existe essa possibilidade, de sobreviver e prosperar. Está, e estará, nas nossas mãos. E nesse sentido, de facto, “vai ficar tudo bem”.