Qual é o valor real, intrínseco, de um bitcoin? Em finais de 2017 transacionava-se a mais de 16 mil euros e nos últimos dias de 2018 por menos de 3 mil. Será que no termo de 2019 a cripto-moeda ainda terá algum valor ou, pelo contrário, será que pelo Natal um bitcoin dará para comprar um automóvel de alta gama?
Um antigo relato japonês, pertencente ao cânon da arte do chá, poder-nos-á ajudar a perceber qual o verdadeiro valor de um bitcoin:
“Em tempos já passados, viveu na capital do império um certo homem chamado Kihei, conhecedor único de tudo o que tem que ver com a cerimónia do chá, renomado pelo seu método e estilo e perícia nesta disciplina e que, dizia-se, tinha sido discípulo do famoso Mestre Sen no Rikyū [千利休, 1522—1591]. Graças ao seu apurado conhecimento de todas as minúcias na arte do chá, à perícia e à exatidão ritual que imprimia a todas as suas cerimónias, era respeitosamente apelidado por todos como Chaya Kihei [茶屋喜兵衛, fl. início do séc. 17], o que quer dizer Kihei Casa de Chá. Tinha livre acesso ao palácio Imperial e todos os nobres disputavam a sua presença nas cerimónias que organizavam e bastava que, por uma involuntária contração muscular movesse, impercetivelmente, o dedo mindinho da mão esquerda, ao verter a água escaldante, para que um novo estilo fosse criado, sendo suficiente que pronunciasse uma palavra de apreço por um pote ou uma taça ou outro artefacto para que o seu valor decuplicasse.
“Num dia quente e pulverulento, e também sufocante e extenuante, em que o círculo solar abrasava o plano terrestre, Kihei sentou-se numa casa de bebidas perto de Kiyomizu-dera para humedecer o céu-da-boca. Passou-se isto já depois de as obras de reconstrução deste belo e imponente templo da seita Hossō, comissionadas pelo Taiyūin-sama [Tokugawa Iemitsu 徳川家光, 1604—1651)], de feliz memória, terem sido dadas por concluídas. Enquanto sorvia o jade líquido no alpendre sombreado, uma gota escorregou-lhe de um dedo para a palma da mão e continuou a deslizar pelo pulso. Levantando a taça à luz clara do dia notou que era produto de olearia local e de tão baixa qualidade, de textura tão grosseira e tão deficientemente vitrificada que, apesar de não ter qualquer racha ou fenda, deixava o chá escoar lentamente através das paredes.
“Aconteceu que um comerciante de óleo estava a descansar do labor e do calor, sentado na escada do mesmo estabelecimento, como um falcão entre voos empoleirado num galho. Sempre alerta para uma mais-valia, como uma ave de rapina atenta para uma presa, viu-o a examinar a peça e disse para consigo: ‘Aquele não é outro senão o famoso Kihei, e ele descobriu alguma característica única naquela taça.’
“Assim, quando Kihei retomou o seu caminho, subiu à varanda, chamou a empregada e disse-lhe: ‘Gostaria de beber uma taça de chá. No entanto, porque por mais que lave as minhas míseras mãos elas estão sempre oleosas, não me posso permitir tocar na vossa preciosa porcelana. Assim, desejo comprar não só o chá mas também a taça.’
“A rapariga respondeu: ‘Não, que a taça não tem valor. Ficareis com ela de graça.’
“Ao que o comerciante de óleo acrescentou: ‘Arigatō gozaimasu. Fazei-me ainda a mercê de me dar aquela que o cliente que saiu agora acabou de esvaziar. Ele tinha um tal ar de prosperidade que gostaria que a minha sorte fosse atrás da sua.’
“A empregada foi tratar do que ele lhe pedira, mas, regressando, disse, fazendo uma vénia de desculpa: ‘Sumimasen. Estou desolada, mas não vos posso dispensar o vaso que pedis, porque em verdade o patrão deseja guardá-lo.’
“Confrontado com esta resposta inesperada, o vendedor de óleo abespinhou-se, chamou o proprietário e insistiu: ‘Por que não posso ter a taça que quero? Não compreendeis que a minha boa sorte está dela dependente? Qual a minúscula e insignificante e irrisória diferença que terá, comparada com as outras taças que te pertencem, para que me negues tal ninharia?’
“Ao que o dono do estabelecimento respondeu: ‘Eu pensava o mesmo, ó honorável paroquiano, mas vi há um instante o freguês que a usou a admirá-la. Assim sendo, tenho de considerar que é de algum modo superior às outras, o que não será estranho, atendendo que comprei alguma da minha louça a um caixeiro-viajante. Portanto, decidi pô-la de parte para a usar em ocasiões especiais.’
“‘A minha sorte é minha e eu quero-a! Qual é o seu preço?’ – insistiu rudemente o mercador.
“Desgostoso com a indelicada insistência e teimosia e contumácia do outro, e suficientemente à vontade para o sangrar, o proprietário replicou: ‘Vossa mercê poderá tê-la por uma moeda de prata.’
“Suspirando e bufando e, ainda, amaldiçoando a avareza do outro, o vendedor de óleo desapertou o cinturão, pescou uma moeda da bolsa e foi-se com a taça.
“No dia seguinte, embrulhou-a num furoshiki e levou-a a um antiquário. Depois das saudações de entrada, disse, mostrando-lha: ‘Aqui vos trago algo de raro e de extraordinário e que o gosto fino e requintado dos vossos veneráveis clientes não deixará de apreciar. Quanto me dareis por isto?’
“O comerciante de antiguidades deu-lhe uma olhadela pelo canto do olho e disse abrupta e rudemente e sem mais cortesias: ‘Tira-me esse lixo daqui!’
“Exclamou aquele que queria vender: ‘O quê? Podeis vós dizer tal coisa de uma taça que foi apreciada por não menos do que o próprio Kihei?’
“Ao ouvir isto, o comerciante de velharias pegou na taça, levantou-a e examinou-a cuidadosamente, após o que disse, pousando-a na mesa: ‘Se Kihei elogiou esse aborto de imperfeição doentia, certamente que ficou profundamente senil.’
“Ouvindo isto, o cabelo do vendedor de óleo eriçou-se de raiva como os pêlos de uma escova. Pegando no seu tesouro, partiu com ele à procura de um segundo comerciante de raridades, às mãos do qual não conseguiu nem mais, nem menos. Abreviando: nos dias seguintes, as solas das suas sandálias foram desbastadas a rondar os estabelecimentos dos outros antiquários da cidade imperial, mas sem mais sorte.
“De tal modo se considerou ludibriado e despojado do seu dinheiro, que o seu fígado ficou seco de mortificação, e decidiu fazer uma espera a Kihei. Um dia, quando este saía pela boca da sua residência, o homem dos óleos atravessou-se-lhe ao caminho, invetivando-o de trapaceiro e embusteiro e velhaco. Estupefacto, Kihei gritou: ‘Sois lunático, vós? Nunca as minhas pálpebras se abriram para a vossa figura! Como dizeis vós que eu vos logrei?’
“Ao que o mercador de óleo exibiu a taça e lhe contou a sua história, acrescentando: ‘Foi pela vossa encenação na casa de chá em Kiyomizu que comprei este caco, e foi em consequência de tal que fui depenado dos árduos ganhos de uma lua.’
“Kihei riu-se e disse: ‘Vede bem, vós haveis pago pela minha fama e não pela taça; bem podeis chamar-lhe minhoca ou águia, mas não passa de comum Kiyomizu-yaki e, para dizer a verdade, bem pobre Kiyomizu-yaki. Mas, bem vistas as coisas, a fama terá o seu valor e, sem dúvida, merece o seu preço.’
“Dizendo isto, pegou na taça e deu três moedas de prata ao mercador de óleo, que se foi embora aplacado.
“Sucedeu que, no dia seguinte, este último, nas suas andanças comerciais, passou em frente da casa de bebidas. Ao vê-lo, o dono da loja disse-lhe: ‘Boas tardes a vossa mercê. Espero que a compra da taça no outro dia vos tenha trazido o fado que vós antecipáveis.’
“Parando na via, respondeu o outro: ‘Konnichiwa. Realmente assim foi e a fortuna sorriu-me. Aconteceu mesmo que a vendi ontem por três vezes o preço que vos paguei.’
“Ao que, o hospedeiro, incrédulo, exclamou: ‘Em verdade? A quem a haveis alienado?’
“Replicou o mercante: ‘A Mestre Kihei, o Casa de Chá.”
“E aproximando-se, acrescentou: ‘Para dizer a verdade, o vosso freguês que no outro dia a admirou aqui foi o próprio Kihei, e eu reconheci-o. Fiquei espantado por ele não vos ter pedido para que lha vendêsseis mas, como o próprio me confessou quando lha levei, a distinção principal daquela taça tinha-lhe passado despercebida até eu lha apontar. Depois disto, ele me disse que ma compraria a qualquer preço. Em verdade, tal como eu o teria feito convosco, mesmo que me tivésseis pedido dez moedas de ouro. Mas como não sou sovina, deixei-a ir por pouco, mesmo sabendo que Kihei receberá em troca dela os seus cem koban [moeda de ouro] de algum aficionado rico.’
“Dito isto, seguiu o seu caminho com o semblante sério de homem de negócios honesto, apesar de sentir cócegas no mais profundo da sua alma por ter conseguido acertar com a sua farpa na ganância do tendeiro que, de beiços distendidos, o ficou a ver afastar-se.
“Ora ocorreu que, não tendo a Lua ainda inchado meio rosto, um certo nobre de baixa patente, que tinha sido abençoado com muito pouco, salvo com muito áureo cabedal, um fátuo diletante e vão amador em tudo o que fazia, e ainda por cima bajulador inveterado de todo aquele que lhe era socialmente superior, decidiu dar uma festa floral na sua mansão, que era contígua ao recinto de Kiyomizu-dera. Este fidalgo convocou o proprietário da casa de bebidas para prover e servir e atender o numeroso grupo de convidados, e enquanto os dois discutiam os pormenores dos refrescos a serem distribuídos, o plebeu mencionou de passagem a maravilhosa taça que tinha deixado escapar por entre os dedos.
“Imediatamente o aristocrata deixou que o seu coração ambicionasse aquela novidade e decidiu obter a peça de loiça para a exibir aos seus convivas. Apressou-se assim a chegar à residência de Kihei, e depois das saudações habituais disse-lhe: ‘Chegou indiretamente ao meu conhecimento que haveis adquirido recentemente uma taça de chá que é uma jóia no seu género, uma verdadeira pérola entre seixos. Há muito que venho buscando uma semelhante, e me ocorreu que poderíeis estar disposto a ceder-me esta que agora entrou na vossa posse.’
“Acontece que Kihei já há muito que não gostava do seu visitante, considerando-o um trapalhão e farsante e adulador, pelo que pôs uma cara grave e disse: ‘Mas porquê?… essa taça não é nada de especial…’
“E quando o outro insistiu, protestou: ‘Não, que eu não sou vil mercador.’
“E assim foi recusando e rejeitando e negando-se até deixar o interlocutor num transe de desejo e cobiça e tentação. Por fim, quando o suposto virtuoso atingiu o clímax do apetite, afrouxou e disse: ‘Bom, pelo menos haveis de vê-la.’
“Bateu com as mãos e, quando um serviçal apareceu, ordenou que a taça lhe fosse trazida. Ao ser colocada à frente deles disse: ‘Para dizer a verdade, o material e a moldagem e o acabamento desta taça não têm nada de especial. A sua raridade reside numa qualidade peculiar e extraordinária e mágica, que consiste em, apesar de não ter nenhuma fenda nem defeito por mais minúsculo que seja, quando é cheia com chá, uma ou duas gotas aparecem imediatamente no seu lado exterior. Averiguei que o proprietário da casa de chá, onde primeiro a vi, a comprou a um bufarinheiro, e não tenho nenhuma dúvida que ela flutuou até aqui, nas correntes inconstantes da fortuna, proveniente das terras da Índya, tanto mais que os nossos livros antigos declaram que os oleiros daquele país possuíam antigamente o segredo de fazer este tipo de barro. A ignorância do mascate e do proprietário da casa de chá não lhes permitiu enxergar o verdadeiro valor desta peça.’
“Ao ouvir isto, a tensão causada pela curiosidade fez com que as veias sobressaíssem no pescoço do visitante e que os seus olhos saíssem das órbitas. Disse ele: ‘Por favor, dignai-vos mostrar-me os seus poderes. Yoroshiku onegai shimasu.’
“O dono da casa convidou o nobre a passarem para a sua sala de chá, num recanto do jardim da sua residência. Aí aqueceu a água e preparou o chá. Depois encheu a taça mágica enquanto o outro a segurava. Imediatamente uma gota lacrimejou para fora dela e molhou a mão do gentil‑homem. Kihei, grave como um boi, começou a recitar uma estância do clássico de Minamoto no Sanetomo [源実朝, 1192—1219]:
“Num paul outonal,
Até as folhas das árvores,
Até as pétalas das flores,
Apesar de não amarem nem raciocinarem,
Choram com o orvalho da noite.
“Exclamou o pobre pateta sugando o ar: ‘Mas isto é a maravilha das maravilhas!’
“A partir de então a insistência dos seus pedidos para que Kihei lhe vendesse a taça intensificou-se como o calor numa tarde de Verão. Este último gaguejava e hesitava, tossicava e objetava até ao momento em que o palerma duplicou a sua oferta pela oitava vez, pelo que finalmente cedeu, suspirando: ‘Miserável de mim! Gostaria de poder deixar esta taça a meu filho como um dos tesouros da família, mas sou um homem pobre e vós haveis-me amplamente persuadido. Dai-me mil koban de ouro e ela é vossa.’
“Ao ouvir isto, o nobre, transbordando de satisfação como um copo de saqué enchido por um ébrio, enviou mensagem ao seu solar para que o mordomo procurasse e juntasse e trouxesse a soma logo ali, assim que recebesse o recado e não mais tarde. E sem mais demora, nesse mesmo instante, levou a taça consigo, não fosse Kihei arrepender-se da transação.
“No dia da festa floral, o novo proprietário exibiu a preciosa taça aos seus convidados, apresentando-a como uma curiosidade sem preço, proveniente da Índya, e estes, quando observaram as gotas suarem pelos lados, lisonjearam-no com as exclamações de admiração da boa etiqueta. Entre os convidados estava o secretário do Ministro da Direita, que lhe disse em particular: ‘O meu Senhor tem um grande gosto por objetos singulares como este. Como ele gostaria de estar aqui para o ver!…’
“Ouvindo isto, o outro, discernindo um modo de se insinuar junto ao poderoso Senhor da corte imperial, respondeu: ‘Em verdade, era minha intenção enviar-lhe esta taça e pedir-lhe que a aceitasse como uma prova insípida da minha estima, tanto mais que a posse de um objeto como este é algo que está muito acima da minha humilde posição. Só ainda o não fiz por temer afrontar a sua grande nobreza. Mas uma vez que vós tal me mencionais, humildemente vos peço que lha ofereçais em meu nome.’
“Como o secretário consentiu nisto, o pequeno nobre pôs a taça num cofre de carvalho forrado em rico brocado e enviou-a juntamente com um poema que compôs no momento:
Desta taça maravilhosa,
Vede como líquidas gotas,
Sempre saem e caem,
Tal como em Kiyomizu,
A água abaixo flui.
“O Ministro da Direita, à medida que tinha crescido em poder, subido em honra e avolumado em riqueza, tinha deixado o seu sentido estético original esmorecer e abater, primeiro, e esvaecer, por fim. Deste modo, mais preocupado com a política do dia do que com chá ou porcelana, quando recebeu o presente cogitou: ‘O Tennō conhece tudo o que há para conhecer acerca destas coisas, pelo que lhe vou oferecer isto. Assim ele sempre se lembrará da existência deste seu servo e pode ser que tal lembrança me possa ser útil quando tiver que lhe apresentar algumas recomendações sobre a reforma do calendário.’
“Assim fez com que a taça fosse posta com veneração em frente do Imperador, juntamente com um makimono onde estava escrita uma descrição das suas estupendas propriedades.
“Sobreveio, no entanto, que Kihei, cuja erudição o Celestial Soberano altamente admirava e estimava, estava na Presença quando a oferta foi apresentada, por ter sido convocado pelo Filho do Céu para discutir um ponto abstruso acerca de um antigo precedente na cerimónia do chá. Quando a taça foi exibida o Único Altíssimo disse-lhe: ‘Que vos parece? A mim afigura-se não ser nada mais que uma mísera peça de olaria de Kiyomizu com vitrificação tão pobre que deixa escoar lentamente o líquido através dos poros.’
“Kihei respondeu: ‘Ó Augusta Porta, assim é, e permiti-me fazer subir ao Vosso exaltado ouvido a sua história.’
“Pronunciou o Augusto Dragão: ‘Dizei!’
“E Kihei relatou-lhe toda a história terminando assim: ‘Sem dúvida que o sujeito com quem tratei a passou a outro mais alto e, possivelmente, este a um mais ilustre, de modo que esta miséria terá finalmente subido até à frente de Vossa Potência.’
“Quando o Luminoso ouviu a história riu-se e exclamou: ‘Incrível!’
“E pegando num pincel e numa pedra de tinta, escreveu alguns caracteres na taça e acrescentou: ‘É a vós, que lhe destes o seu primeiro valor, que ela deve pertencer.’
E ofereceu-a a Kihei.
“Conta-se que, depois, um daimio, um dos mais ricos sob o Céu, ouvindo que Kihei possuía uma taça com a caligrafia da Mão Imperial nela inscrita, fez uma oferta de dez mil koban de ouro, ao que o Grande Mestre terá agradecido e respondido: ‘Arigatō gozaimasu. No entanto, uma vez que traz nela inscrita a letra do Céu-Descido é impossível dela fazer vulgar mercadoria. Contudo, a vós a empresto até que a brisa da impermanência me sopre para fora desta existência, após o que vos peço que a devolveis à minha família.’
“Assim o daimio recebeu-a de empréstimo e pouco depois enviou ao Casa de Chá dez mil moedas de ouro a título de presente. E a taça desde então passou a ser conhecida como a Incrível Taça de Chá.”
Qual é o valor de um bitcoin? Ou de uma barra de ouro, de uma casa ou de um quadro de Picasso? É exatamente igual àquilo que nós, os homens, na nossa inconstância e vaidade lhe queiramos dar. Nem mais, nem menos.
Professor de Finanças, AESE Business School