Fundada em 1498 pela Rainha D. Leonor de Lencastre (1458-1525), a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), hoje pessoa coletiva de direito privado e utilidade pública administrativa, encontra-se numa situação difícil, ao ponto de Ana Jorge, a nova provedora, admitir um “risco” de 20 M€ de prejuízo. Em consequência, a fim de garantir a sua sustentabilidade, a SCML, que gere, em causas próprias, 26,52 % das receitas líquidas dos jogos sociais, informou as várias organizações desportivas com quem tem contratos de patrocínio que os mesmos iam ser revistos.

Tal informação, como se um contrato de patrocínio fosse um subsídio regular, desencadeou os mais ferozes demónios que se empenharam em crucificar a SCML na comunicação social, fazendo passar informações pouco rigorosas e até mesmo falsas de que os orçamentos das federações desportivas iam ser objeto de cortes que colocariam em risco a própria participação nos Jogos Olímpicos. Perante tão estrambólicas opiniões, é necessário esclarecer-se que, dos lucros líquidos da SCML provenientes dos jogos sociais, sempre estiveram e estarão garantidos por lei os 8,87 %, a transferir para o Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) a fim de serem aplicados no desenvolvimento do desporto, incluindo o apoio às federações desportivas e à participação nos JO.

Mas quando parecia que as coisas iam acalmar, JM Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), entrou em “modo parafuso” e, segundo o jornal A Bola (2023-08-16), lamentou que a gestão das verbas da SCML, nomeadamente pelo departamento de marketing, se oriente por uma lógica “capitalista que avalia o investimento não em função de razões sociais, mas financeiras”. E reforçou: “é a escola de Chicago a funcionar. Puro neoliberalismo”. Ora, tratando-se de uma acusação pública que, pela sua carga ofensiva, põe em causa uma instituição centenária de solidariedade social que goza de grande prestígio entre os portugueses, aguarda-se, com expectativa, o procedimento junto do Ministério Público que a direção da SCML e a sua provedora Ana Borges possam vir a tomar a fim de defenderem o direito ao bom nome da instituição que dirigem.

E tanto assim deve ser que, depois de cair o pano de mais uma tragicomédia grega que, nos últimos anos, a corporação desportiva, olimpicamente, tem protagonizado com brilho e competência, chegou-se à conclusão de que o alarido corporativo ficou, tão só, a dever-se a uma verba que rondava os 4 M€ (Relatório da SCML, 2020) aplicada em contratos de patrocínio diretamente estabelecidos com diversas organizações desportivas e na atribuição de bolsas a atletas, através do COP.

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Entretanto, o Secretário de Estado da Juventude e Desporto (SEJD), João Paulo Correia, apressou-se a acalmar a corporação desportiva informando que ia reunir-se com a provedora da SCML, a fim de esclarecer a situação. E, decorridos uns dias, assim como que num passo de mágica, os 4 M€, provavelmente, desta feita, virtuais, voltaram a estar em cima da mesa, pelo que, afinal, como é habitual num país de memória curta, foi solenemente prometido que os ditos cortes para 2023 já não iam acontecer, mas o programa desportivo da SCML para 2024 ia ser revisto.

Se tal vier a acontecer, o que se espera é que, por um lado, se cumpram os desígnios misericordiosos da SCML e, por outro lado, sejam respeitadas as obrigações constitucionais que competem à SEJD. Quanto à SCML, a palavra misericórdia que deve determinar as políticas sociais a desenvolver é composta pelos termos latinos: miseratio (miséria) e cordis (coração), quer dizer, compaixão para com a miséria alheia, pelo que, a SCML “tem como fins a realização da melhoria do bem-estar das pessoas, prioritariamente dos mais desprotegidos…”. Do lado da SEJD, a Constituição determina no artigo 79º que (1º) todos têm direito à cultura física e ao desporto; (2º) incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e coletividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto.

Todavia, nos últimos dez anos, a SCML não teve outra alternativa senão, contranatura, patrocinar: (1º) o “talento desportivo” através de bolsas destinadas a atletas de elevado nível que já usufruem de vários apoios e, (2º) os “grandes eventos desportivos de bandeira portuguesa” que nada têm a ver com os desígnios da SCML e pouco com as obrigações constitucionais da SEJD.

Na difícil situação financeira em que se encontra, a SCML está perante a oportunidade de deixar de ser uma entidade passivamente patrocinadora que, por serviços de marketing prestados, se limita a fazer transferências bancárias para as organizações desportivas, a fim de, em alternativa, assumir-se como uma instituição com vontade própria que, em cooperação com a SEJD, imponha aos dirigentes desportivos uma visão social de um desporto direcionado para as populações mais desprotegidas.

O que está em causa não é o “neoliberalismo” da SCML. O neoliberalismo de que a SCML foi acusada não passa de uma cortina de fumo que procura esconder vinte anos de absurdas políticas públicas em matéria de desporto. O que está em causa é o neoliberalismo impregnado na corporação desportiva que se expressa: (1º) através de uma cultura de rendimento porque só vale quem rende; (2º) na procura desenfreada do recorde que alimenta a comunicação social; (3º) na alienação do espetáculo de massas que coloca as populações em morte cerebral; (4º) num vergonhoso profissionalismo precoce que importa jovens estrangeiros que acabam escravizados; (5º) na imoralidade das “naturalizações de aviário” de atletas de elite provenientes de países subdesenvolvidos que pervertem o desporto nacional e; (6º) numa pesada e insaciável máquina burocrática que, apesar de alguns resultados de atletas de exceção, entre uma prática desportiva de base com um volume cada vez menor e comitivas desportivas internacionais com um número cada vez maior, está a destruir o desporto.

Portanto, a oportunidade é excelente para se mudar o rumo a um desporto que, de há cerca de vinte anos a esta parte, funciona numa lógica neomercantilista que, enquanto fase avançada do neoliberalismo, tanto à esquerda quanto à direita, é utilizado como um catalisador de negócios no atual jogo de soma nula da economia política global em que o caso Rubiales é o exemplo mais atual. Em resultado, nos últimos dez anos, Portugal perdeu mais de um milhão de praticantes de atividade física e desportiva e quanto a medalhas olímpicas ainda não conseguiu superar as três medalhas conquistadas nos JO de Los Angeles (1984).

E agora que o Secretário de Estado do Desporto se disponibilizou para colaborar na conceção de um projeto de desenvolvimento do desporto promovido pela SCML verdadeiramente ao serviço dos portugueses mais carenciados, começa a ser possível inverter o estuporado caminho do desporto nacional. Assim, o que se espera é que, de acordo com a sua missão histórica, a SCML desencadeie uma revisão total das políticas de apoio ao desporto a fim de, a partir de 2024, por um lado, passar a desenvolver projetos verdadeiramente no âmbito do seu desígnio social e, por outro lado, que os projetos que financia contribuam, decididamente, para desenvolver o desporto nacional. Por exemplo, o desporto português daria um significativo salto quantitativo e qualitativo se os 4 M€, em vez de serem desperdiçados em contratos de patrocínio cujo numerário se perde nas rubricas da contabilidade das federações, passassem a ser, de uma forma continuada e atualizada à inflação, aplicados num programa nacional de promoção da prática desportiva, do ensino ao alto rendimento, nos bairros mais desfavorecidos dos grandes centros urbanos do País e no apoio aos pequenos clubes regionais que sustentam a prática desportiva de vastas populações carenciadas por esse país fora.

Se tal vier a acontecer, a SCML, em cooperação com a SEJD, contribuirá, decididamente, para a construção de um desporto nacional mais sério, mais competente e mais solidário.