Quando o Diogo perguntou como é que seria o meu dia perfeito, lembrei-me do que o Emillien, um francês com quem vivi durante o Erasmus, disse certa vez: “Seria passado nas minhas montanhas”. O Emillien aludia aos alpes franceses onde fica a sua cidade natal de Grenoble. Eu referia-me à Serra da Lousã e, na verdade, as montanhas não são minhas, foram-me emprestadas pelos meus avós.

Estamos no ano 2024 e Portugal foi todo conquistado pela tecnologia. Todo? Não! Uma pequena vila para os lados de Penela resiste ainda e sempre à passagem do tempo e é naquele canto, no meio da serra, que começa o meu dia perfeito.

Apesar de ser Verão, a montanha cumprimenta-me com uma brisa fria. (Em vinte minutos não haverá vento matutino que me salve). Fecho a porta da garagem, aperto o capacete e faço-me à estrada. As primeiras pedaladas são feitas ao ritmo da terra. Atestam ainda a sonolência do campo. Mas a estrada vai despertar em breve. A inclinação do alcatrão atinge um declive elevado ao mesmo tempo que a vegetação se afasta para permitir que o sol aqueça os meus ossos. Levanto-me do selim e acelero montanha acima. Para trás fica a vila dos meus avós, o último reduto da civilização na minha jornada rumo aos céus.

A dois terços do caminho, sinto que atravesso o meu deserto. A estrada alarga e alonga, não há uma árvore que me dê sombra, a bicicleta fica mais pesada e os pulmões têm dificuldades em receber oxigénio. Não consigo escapar ao calor de Agosto. As rectas que percorria com assertividade transformam-se em zigue-zagues. Os olhos ficam presos ao chão enquanto ouço a Doris do filme À procura de Nemo a cantar: “basta pedalar, basta pedalar, basta pedalar”.  E é no meio desta tareia que há uma libertação da minha alma.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Estou só, entregue à minha sorte. Sou eu e as montanhas. Não há carros, não há pessoas. Se os deuses estiverem comigo, cruzar-me-ei com veados. Ouço os javalis, mas não os vejo. É o triunfo selvagem da minha bestialidade. Ao chegar ao ponto mais alto da serra, a sintonia com o animal que sou está completa: sei que sou uma águia.

Começo a descer em voo picado, mas faço um desvio para mergulhar nas águas geladas da nascente que corre encosta abaixo. Quero gritar que estou presente. Que estou ali. Que não há mais mundo sem ser o que a vista alcança.

Chego a casa em cima da hora de almoço para encher o bandulho com o repasto de reis cozinhado pela minha avó. Se o dia for mesmo perfeito, a tarefa de levantar a mesa e lavar a louça caberá aos outros membros da família, deixando-me livre para arrastar o corpo dorido até à divisão onde está a bilbioteca.

Caio no sofá com um bom livro que leio até ao apagar dos olhos. Desfruto da sesta de Verão.

Ao acordar, lancho o pão quentinho da padaria com queijo do Rabaçal. Segue-se um mergulho na piscina. Janto com a família, furtando-me novamente às tarefas da casa e a noite acabará em filosofias sobre as estrelas debaixo de um dos céus mais claros da minha vida.