Temos vindo a ser habituados a falar de colecionadores de arte por motivos que nem sempre são os melhores, assunto a que já lá iremos. Os media mais generalistas terão, certamente, alguma influência no escrutínio que deles fazemos, enquanto a maioria destas pessoas vai, serenamente, construindo a sua coleção, que tanto advém do incentivo financeiro que daí obtêm, como do prazer de desfrutar da sua essência, estando em crer que seja esta última a principal intenção dos colecionadores, criando ordem e beleza através da arte, e oferecendo uma visão específica e crítica do presente, alargando o espetro das possibilidades futuras.
Evoluímos, enquanto sociedade, de coletores para colecionadores. Ao longo da nossa existência deixámos de ser nómadas meramente recolectores que se dedicavam à sobrevivência, apanhando o que podíamos para nos alimentarmos e protegermos, até ao modelo sedentário em que vivemos e que continuamos a construir, criando objetos que sirvam as nossas necessidades, sejam elas materiais, socias ou emocionais. Esta ordem das coisas que temos vindo a criar – certamente mais fixada, talvez mais contemplativa – levou a que o espírito colecionista sobreviesse desde cedo, um pouco por todo o mundo. Desde a Biblioteca de Alexandria, passando pelo legado ainda vivo dos Medici, pelos gabinetes de curiosidades dos séculos XVI e XVII, onde encontramos por cá, por exemplo, o notável trabalho de Frei Manuel do Cenáculo, que ainda hoje se repercute no Alentejo, e, mais recentemente, no incontestável testamento cultural com que Gulbenkian nos presenteou, refletimos aqui uma parte inexpressiva da importância dos colecionadores na construção das estórias.
Também a forma de colecionar evoluiu, deixando o ecletismo de outros tempos para ser cada vez mais especializada; eventualmente, perdendo um pouco a paixão pura e sendo mais mercantilizada, sem que daí tenha de vir qualquer demérito.
Se este demérito, porventura, existe, não será pelo empenho do colecionador no seu afã do ajuntamento, mas, algumas vezes, na forma como junta capacidades para construir a sua coleção, tal como expressei no início deste artigo. Por isso, colocar na mesma frase João Rendeiro e José Berardo sem ser para falar do que se conhece à voz comum e expressar uma palavra positiva pelo trabalho feito por ambos, significa que estou a referir-me às coleções de arte que foram construindo.
Colocando fora deste texto qualquer opinião sobre o mediatismo que os envolve, é difícil negar que ambos construíram acervos de relevo no âmbito da arte contemporânea: no caso do primeiro graças a um forte sentido estético e a uma sensibilidade cultural reconhecida, juntamente com o trabalho de curadoria de Alexandre Melo; no caso do segundo, graças à expertise de Francisco Capelo que deu a forma e consistência iniciais à coleção, sem o que esta não teria o fulgor que tem. Ainda que a maioria das pessoas reconheça nestes dois colecionadores uma carga negativa ditada pelas suas jornadas profissionais, também é por esse mediatismo que são capazes de associá-los às suas coleções.
Mas existem em Portugal muitos outros colecionadores, notáveis pela sua discrição e ética, que nos “oferecem” motivos mais que suficientes para nos deslocarmos pelo país. São os casos, por exemplo, de António Cachola, em Campo Maior, Cupertino de Miranda no Porto, Manuel de Brito em Oeiras e mesmo Armando Martins que terá a sua coleção exposta no futuro MACAM, a partir de 2023, em Lisboa, referindo apenas alguns dos mais relevantes no âmbito da Arte Contemporânea com espaços abertos ao público, e sabendo do sério risco que corro em pecar por defeito.
No caso das coleções da Ellipse Foundation e do BPP, de João Rendeiro, sabemos agora que passam para a tutela pública e que o seu futuro deverá, previsivelmente, ser garantido pela integração deste espólio com o da até agora conhecida como Coleção Berardo, integrando um futuro novo museu nacional de arte contemporânea que se foque no período histórico que esta compreende. É o que parece ser uma boa decisão, garantindo que dois grandes e importantes acervos privados portugueses inquestionavelmente representativos deste período, tanto no que se refere à representação nacional, quanto à presença de artistas estrangeiros, se tornam um projecto ainda mais importante, representando um investimento significativo no campo da arte contemporânea em Portugal. Resta, agora, saber quantos anos ainda faltam para que possamos pôr os olhos e os restantes sentidos sobre o discurso imagético que estes acervos, juntos, permitem criar.