Faz agora seis anos que Damien Hirst iniciou a criação de uma série de obras às quais correspondia o respectivo NFT (non-fungible token).

Faz agora pouco mais de um ano que Damien Hirst lançou um projecto no qual questionou os proprietários dessas obras se pretendiam manter o suporte físico (o papel com a sua expressão criativa) ou o correspondente NFT.

Fazem agora poucos meses que Damien Hirst finalizou esse projecto e metade dos compradores preferiu ficar com o NFT.

E isto é o passado. Recente. Por agora, uma história animada do mundo da Arte. Daqui a algum tempo, será História. História da Arte, provavelmente.

No presente, Damien Hirst tem estado a queimar todas as cerca de 5000 obras físicas dos proprietários que decidiram ficar apenas com o NFT, como noticiou o Observador aqui.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No futuro, quando este episódio fizer parte da História, essas 5000 peças existirão apenas na blockchain, algures na rede, encriptadas, correspondendo-lhes apenas um pedaço de código disperso que poderá já nem ter sequer compatibilidade com a tecnologia de então. E não sei como continuará a história, mas será, certamente, diferente da que estamos habituados a ver!

Se até há poucos séculos atrás, a produção artística seguia metodologias definidas, de acordo com as regras expressas da tratadística, com o advento da Revolução Industrial e as inúmeras revoluções que a ela se têm vindo a seguir – tanto no campo científico, como no campo social – essa produção artística tem, naturalmente, acompanhado todo esse processo com igual intensidade, com os criadores a quebrarem as estritas regras técnicas e estéticas até então vigentes e introduzindo na sua produção os mais diversos materiais, combinados até à infinitude.

E no meio deste fervilhar do mundo, os conservadores têm o papel de manter viva pelo máximo de tempo possível a memória de cada época, dentro dos museus, das colecções, das exposições, das reservas; outras vezes, até, à luz do dia, quando a arte se expõe no espaço público.

E conservar estas obras de arte e os restantes bens culturais vindos desses tempos mais distantes já é um enorme desafio, pelas muitas variáveis que envolvem a unicidade de cada peça. Pois ainda que a maioria dos objectos de uma tipologia tenham características semelhantes (por exemplo, se se fala numa pintura sobre tela ou sobre madeira, é fácil compreender lato sensu do que se trata e até enquadrá-la num período histórico ou atribuir-lhe um autor ou outra característica, analisando os materiais que a constituem), cada uma teve o seu percurso e sofreu o envelhecimento próprio que o tempo lhe traz – no fundo, como acontece com cada um de nós: evoluindo e envelhecendo.

Mas os conservadores deparam-se já hoje com enormes desafios quando lidam com a Arte Contemporânea, nomeadamente com a produção feita a partir da última metade do século XX. Porque não há um padrão ou uma norma. Porque o artista não pinta, não esculpe, não interpreta, não cria segundo um tratado: ele cria porque se exprime; e exprime-se à sociedade utilizando o que lhe dá o mundo que o rodeia. E esse mundo dá-lhe toda a possibilidade de materiais, sem regras nem espartilhos técnicos, que ele combina em função do seu processo criativo, acompanhando, também ele e a sua expressão, a “evolução dos tempos”.

Chegados aqui, os conservadores deparam-se, actualmente, com esse desafio acrescido de lidarem com obras de arte que, ainda que forçadas à classificação segundo um parâmetro aparentemente reconhecido, não se encaixam em nenhum cânone formal estabelecido. Um quadro pode não ser uma pintura a óleo, acrílico ou guache. Pode até não ter qualquer tinta aplicada. Pode ser composto de colagens, de moldagens, de fixações, de qualquer outra coisa que dê forma à expressão do seu criador, mas não ter nada semelhante ao que estamos habituados a reconhecer enquanto quadro à excepção de ser criado para se expor num suporte vertical.

Compete, então, ao conservador, deslindar as formas de conseguir preservar cada um dos materiais presentes na obra, através de um trabalho tornado agora mais árduo e, em muitos casos, imprevisível para a perenidade da matéria que compõe a obra, o que constitui a base do projecto de investigação que desenvolvemos.

E se este panorama do estado da Arte coloca à Conservação desafios acrescidos e um enorme grau de incerteza no que respeita à garantia da manutenção do bom estado dos objectos, sendo que muitos deles são merecedores de uma valoração financeira significativa por parte do mercado e de quem neles investe, ainda assim estamos perante peças que, de algum modo, encontram um caminho materializável, “palpável”.

Mesmo quando pensamos nas performances, nas instalações ou noutras expressões plásticas mais voláteis, se pretendemos mantê-las segundo um padrão de memória revisitável, os registos que são feitos (quer sejam gráficos, audiovisuais ou de qualquer outro tipo) permitem-nos garantir alguma forma de materialidade que se consegue conservar.

Mas este novo presente, este futuro em que já estamos, é um desafio não só ao mundo da arte, mas também ao mundo da conservação, e a toda a sociedade. Coloca-nos profundas interrogações sobre o caminho da materialidade do objecto, porque já não estamos apenas no campo – já quase démodé – da digitalização, mas num tempo e espaço mais etéreos, dispersos na rede, sem qualquer espécie de materialidade, sem um único lugar físico onde estar, num continuum em permanente evolução em que não conseguimos prever qual será a metade dos compradores das obras de Damien Hurst que deixará esse “investimento” para os seus netos: se os que ficaram com os NFT’s, se os que guardaram as folhas de papel coloridas. Mas conseguimos prever, neste momento, que é possível conservar as folhas de papel com pintas feitas, mas não sabemos sequer onde estarão os NFT’s ou se a blockchain terá inteligência artificial capaz de querer fazê-lo.

Uma coisa, pelo menos, sabemos: os conservadores estarão a fazer essa corrida de fundo, quase oculta, para manter disponíveis e em bom estado os bens culturais, numa busca incessante por novas formas de salvaguarda de um património que, mesmo sendo de alguns, é parte de uma memória colectiva que nos identifica enquanto indivíduos e enquanto sociedade.