1 Fui comprar uma agenda. Uma coisa rotineira que se faz no outono como comprar castanhas na rua, mas apesar da reedição da rotina e mesmo sabendo o que se quer, toma o seu tempo. Tudo conta: a textura, o cheiro, a cor, o formato, a capa, a letra. Tudo são indispensablidades na escolha de uma nova agenda e afinal haverá poucas companhias tão permanentes ao longo do novo ano mas foi aí que tudo escureceu: novo ano? E haverá novo ano? Onde, para quem, feito de quê? E subitamente a agenda tornou-se ali, naquela papelaria, o mais melancólico símbolo deste outono incendiado pelo ódio.
Tantas sombras. Só sombras sobre os dias.
Quase se acha que se não pode pensar, olhar, fruir, escrever sobre mais nada que não seja o que aí está. Quando foi da Ucrânia, vai fazer dois anos (dois anos…), a Europa passou a estar em guerra. Oficialmente. E assim foi, até ao dia 7 de Outubro, data em que aquele Médio Oriente saiu da sua geografia própria que não é pequena e ocupou o mundo: está-se, estamos, em guerra. Duas guerras. Que agenda nova comporta a consciência disto? E com quê, lá anotado?
2 E no entanto… dei pela vida a continuar no domingo, num entre parêntesis roubado a este tempo de vésperas: num auditório esgotado da Culturgest, iria ser exibido o filme de Sofia Marques, “Verdade ou Consequência” que tem lá dentro Luís Miguel Cintra. A sessão começou ao contrário: com uma standing ovation a Luís Miguel, cabeça branca, olhar perscrutante, sentado solitariamente na primeira fila da plateia. Um imperador romano. No fim houve nova trovoada de palmas mas aqueles aplausos, ainda antes do filme, mostraram ao imperador o que Lisboa, há muito, lhe queria voltar a dar : reconhecimento, gratidão, certeza.
3 E depois, veio o filme, ah o filme… A realizadora avisou logo que não era “sobre o Luís Miguel” mas “com” ele. Também foi assim que o vi. Durante uma hora e quarenta (elegida entre as setenta filmadas), Luís Miguel Cintra estava lá. Estivemos “com” ele. De uma forma nunca vista: não se parecia com um documentário com “notáveis” em modo de elogio, a debitar adjectivos; não se assemelhava a uma entrevista com perguntas previsivelmente alusivas a uma carreira com assinatura na cultura portuguesa dos últimos cinquenta anos; não se confundia com um “in memoriam”. E por isso todas as coisas no écran tinham importância: a música, a geografia dos lugares, o que Luís Miguel diz, o que os outros lhe dizem, a Cornucópia e a família da Cornucópia, os palcos; a sua casa e outras casas; faróis em estradas solitárias, linhas férreas, estatuária religiosa, anoiteceres. Ruy Belo. O cinema e o “seu” cinema. Manuel de Oliveira, o Porto, o Douro. Imagens, fragmentos, momentos. Momentos sem ordem aparente, instantâneos, álbuns de fotografias a serem abertos, fotos a serem identificadas, um voo sobre uma encenação, uma entrada em cena, indicações, memórias, mulheres que cantam. A Espanha é uma catedral, a pedra e a talha de mais anjos e mais santos. E ele, com uma atenção minuciosa, a consertar desveladamente alguns deles,
Parece descosido ou sem propósito? Não, é denso, intenso, cheio e vário, tão capaz de assombro como de candura. De interpelação quanto de descodificação.
E de vislumbres de inocência
“O filme tem muita da Sofia” dizia-me ele horas depois, com ternura na voz. “Há uma grande intimidade entre nós e há tanto tempo, ela entrou na Cornucópia com 18 anos, ficou até ao fim, fidelíssima. No filme não há esforço, há afecto, respeito, há confiança em mim. Convivemos muito, percorremos a Espanha toda com um espectáculo. O filme tem uma coisa muito bonita que é a música, a Sofia dizia-me ‘eu quero pôr as tuas músicas’ e pôs. E também deixa ver as coisas em que eu penso…”
4 Não me espantei, já intuíra tudo isto, conheço Luís Miguel Cintra há muito, fui das primeiras jornalistas a entrevistá-lo quando se fundou a Cornucópia. E das primeiras vezes que os meus filhos viram teatro foi lá, nessa mesma definitiva Cornucópia, ainda estava o Jorge Silva Melo. Que tempos, ( e como foi milagroso tê-los vivido assim, de tão perto, com algumas pessoas.) Mas além disto e passando por cima de discordâncias políticas ou épocas de distância, havia — houve sempre — fortíssima uma rendição: a minha ao seu imenso talento. E ao que dele usufruí, décadas fora, não só em palcos, mas em recitais quase confessionais em capelas, encenações de cantatas em conventos ,recitações da Paixão no altar de igrejas. Havemos de voltar, o Luís Miguel e eu, a falar de tudo isto. E do filme. E do seu absolutamente invulgar livro “Pequeno Livro Arquivo”(Edições 70), saído este ano, e que é um grande e impressivíssimo arquivo de memória pessoal, teatral, intelectual, artística, agora partilhada. Os arquivos pedem demora, este é para se ir lendo, é preciso dar-lhe tempo. Falaremos de tudo isto, sim -e de Deus como também ás vezes fazemos – quando tornar a visitá-lo na sua pequenina casa de Vila Nova de Gaia onde agora habita. E de onde se vê o espelho do Douro por baixo da sua janela.
5 Irei a esse e outros sítios se as guerras o consentirem e o mundo não desabar de vez para um lado. Ei-lo demencialmente inclinado para o único lado para onde uma muito considerável parte da sua população, da sua juventude, da sua “inteligência”, da sua intelectualidade, da sua media, está exclusivamente virada. No dia 8 ou 9 deste mês li num jornal internacional que a “Rua Árabe”, em fúria, tinha descido às ruas de várias das suas cidades (cito de memória). O jornal esqueceu-se de dizer que, nesses mesmos dias, a “rua europeia” de capitais e cidades da Europa também estava em fúria contra Israel. A “rua europeia” escolheu geminar-se com a “rua árabe” contra um único culpado e com ela partilhar o seu ódio. Onde andará o rasto de uma matriz civilizacional, uma história e uma geografia que obrigariam a uma responsabilidade tão diversa – na natureza, na racionalidade, no propósito – daquela a que assistimos, traduzida nas reações que diariamente testemunhamos através de media tão solicita?
Julgo na minha vida, nunca ter assistido a tamanho retrocesso civilizacional.
Tão temível e terrível retrocesso.
PS: Na Saúde pública regrediram mas em termos mentais: quem não está nada bom da cabeça no circulo dos que pensam, decidem ou mandam no indispensabilíssimo Serviço Nacional Saúde? Como é possível (há oito anos no poder…!!!) que o governo e os seus decisores, o PS e os seus responsáveis, assumam esta falta de respeito e compaixão tão ofensiva pelos mais desfavorecidos dos portugueses? Que os assustem e marginalizem desta maneira?